domingo, 21 de dezembro de 2008

FUGAS: UMA LATERNATIVA DE LIBERDADE DOS ESCRAVOS




FUGAS: UMA ALTERNATIVA DE LIBERDADE DOS ESCRAVOS

Maria Nelly Santos

Durante muito tempo a historiografia brasileira produziu e reproduziu uma história da escravidão fundamentada na imagem do escravo dócil, passivo e submisso. Estudos recentes, indicando a descoberta de novas fontes e a reinquirição de outras, atestam como o escravo reagiu de diversas formas a escravidão que lhe foi imposta. A fuga, por exemplo,foi uma delas. Ocorreu em todas as partes e em todos os tempos como algo inerente ao sistema escravista. E tanto mais freqüente quanto maior rigor do cativeiro.

No Brasil, da colônia à abolição, os escravos sempre se utilizaram deste recurso porque “a evasão por mais simples e mais pronta execução era eleita como solução ideal, posto enganadora e fugaz”. Para Kátia Mattoso, a causa primeira e inspiradora maior, teria sido “a revolta interior do escravo inadaptado. O escravo (...) não escapa somente do seu senhor ou da labuta, elide os problemas de sua vida cotidiana, foge de um meio de vida, da falta de enraizamento no grupo de escravos e no conjunto da sociedade”.

Tentar ser livre, mesmo expondo-se a todos os riscos foi o sonho dos escravos José, Joaquim, João Mulungu e Hilário, presos na Província de Sergipe em entre 1871 e 1876. Nossa proposta não é unicamente biografá-los, e sim, analisar a trajetória da fuga, o momento crucial de capturas, o desenrolar do processo e suas conseqüências.
Chamamos atenção que esse trabalho é basicamente resultante das leituras dos autos de perguntas de processos-crimes. Se por lado, tem um caráter oficial, por outro, trata-se de um tipo de fonte, cujas características possibilita reconstruir a história do dominado a partir de depoimentos dos elementos dessa categoria. Por conseguinte; quem eram, como sobreviverem enquanto trânsfugas do sistema escravista, onde, como e quando foram capturados. O quadro a seguir, identifica-os preliminarmente.

Excetuando João Mulungu, que passou oito longos anos longe do domínio do seu senhor, os demais usufruíram um tempo efêmero de liberdade, variável de dois a seis meses. Independente dos percalços inseparáveis de toda fuga, sue sucesso estava condicionado aos fatores sorte, esperteza, audácia do escravo, solidariedade, proteção de terceiros e do grau de disposição do senhor de reavê-lo. Este, enviando todos os esforços, lançava mão de uma série de dispositivos como anúncios em jornais, recompensa, contratação de serviços de capitão do mato, etc. Em suma, entre o ato de fugir e o de sobreviver na clandestinidade, o escravo enfrentava condições extremamente adversas e desvantajosas. Por isso, não é estranhável que a maioria ass fugas tenha redundado em completo fracasso.

Afora as causas gerais, apontadas no início deste trabalho, quais especificamente, desencadearam a evasão dos quatro escravos?

Para José concorreu o fato de “tendo precisão de farinha, por ser muito pequena a ração que recebia, tirava nas roças do dito Isac um cesto de mandioca, e por tal haver descoberto, o mesmo Isac o castigou como poz-lhe um ferro no pescoço e que tais castigos foram a causa”.

O segundo, Joaquim, disse que o seu senhor, João Gonçalves Franco, “além de rigorosos castigos que já lhe tinha aplicado (...) prometeu dar-lhe novos, prendê-lo e mete-lo no tronco”.

Quanto ao depoimento de João Mulungu, apesar de longo, vale a pena transcrevê-lo porque os detalhes colocados deixam patente o excesso de severidade do seu proprietário João Pinheiro Mendonça, Confessou:
“(...) sendo ainda de pouca idade, seu senhor o sobrecarregava de trabalhos superiores as suas forças e castigando-o, às vezes sem razão, o fazia com rigor. Assim, saiu ele de casa por duas vezes a procurar senhor e sendo desenganado que o seu senhor não o vendia por este ter declarado a quem procurava comprá-lo. Deliberou-se pela terceira vez a fugir por não suportar mais a maneira que o seu senhor o tratava, já surrando-o, já trazendo-lhe ao pé uma corrente e sujeitando-o a pesados serviços como botar fogo na fornalha; e, efetivamente fugindo não mais procurou a quem o comprasse e sim, entranha-se pelos matos”.

Suas declarações dão conta que o senhor desconsiderando sua pouca idade, atribuía-lhe tarefas incompatíveis com a sua força física. Estabelecendo-se uma relação entre o ano de captura (1876) e a idade indicada no processo (25 ou 30 anos), deve ter nascido em 1851 ou 1846. Conforme afirmativa dele, nascera em Itabaiana e era filho de Maria, escrava de José Ignácio Prado, proprietário do engenho “Cundongá”. Admitindo ser 1868 o ano da fuga definitiva, teria na ocasião 17 ou 22 anos de idade. Logo, era muitíssimo jovem quando foi vendido a João Pinheiro de Mendonça, dono do engenho Mulungu, cujo nome, serviria para identifica-lo pelo transcurso de sua vida.

A revolta interior e o trabalho desumano estimularam-lhe a vontade de evadir-se. Duas vezes tentou, sem sucesso. O retorno, sempre mais doloroso e humilhante, aumentava-lhe a amargura e ódio que se tornaram companheiros inseparáveis.

Por último, o Hilário. Único a não alegar os motivos de seu ato. Isto não interfere na análise porque afinal, o desejo maior e manifesto em todo o escravo, sempre foi a busca incessante de liberdade.

Que temos então? Um escravo depauperado em seus cinqüenta anos, escapando aos rigores do castigo físico e das marcas indeléveis do ferro no pescoço. O motivo? Ter sido flagrado com um cesto de mandioca, tubérculo que transformado em farinha complementaria a pouca “ração” diária. E finalmente, a velha história tão comum e inseparável da escravidão: violência, excesso de trabalho e castigos intoleráveis. Castigos comprovadores de que os senhores, nos limites de suas propriedades, exerciam uma espécie de “justiça” da ordem legal estatal.

O número limitado dos exemplos desautoriza-nos formular conclusões. No mínimo, porém, nos induz sobre a necessidade urgente de aprofundar os estudos das relações entre senhores e escravos. No caso específico de Sergipe, as teses de Dom Marcos de Souza e de Felte Bezerra devem ser revistas.Aliás, Luis Mott refletindo sobre esse aspecto adverte: “Bem tratados ou não, (...) o certo é que volta e meia a escravatura estava se rebelando, chegando alguma vezes a constituir grave ameaça a tranqüilidade pública”.

Vai mais alem dizendo que a contestação da ordem estaminal assumiu em Sergipe.
“(...) no mais das vezes, a forma de rebeldia individual do tipo fuga, suicídio, assassinato de senhores ou de prepostos seus, incêndio de propriedade rural, envenenamento, etc.”

Apesar de sabermos da freqüência de tais fatos, é –nos impossível conhece-los em sua amplitude por que muito poucos foram estudados. No que se refere ás fugas, esta é a nossa convicção: nem todas culminaram em quilombos, mas, sem dúvida, todos eles mesmos, originaram-se daquelas.

Por exemplo, em 1868, quando João mulungu escapou definitivamente do domínio do seu senhor, fê-lo sozinho. Abandonou itabaiana e se deslocou para o termo de Capela. Posteriormente encontrando-se com José da Silva, escravo de Manuel Antonio de Morais, e Manuel da hora, pertencente ao cel. Gaspar de Melo, formou o primeiro “rancho’’ em terras do engenho boa vista . procedimento idêntico tiveram José maruim, em 1871, Joaquim,em 1872 e hilário em1876. o primeiro saiu do engenho cana brava para as matas do engenho são José ( Japaratuba) pois era sabedor da existência de um quilombo naquela área; o segundo terminou estacionando em outro nas cercanias do engenho Limeira ( Divina Pastora); enquanto que o terceiro, por sinal, preso juntamente com João Mulungu, dirigiu-se para o quilombo situado nas proximidades do engenho Jurema ( Rosário).

Em suma: todas as fugas aqui analisadas caracterizam-se por ações individuais.

O grupo de 1868 , instalado na Boa Vista, permaneceu por um espaço de dois meses no termo de Capela. Para matar a fome e sobreviver a toda odisséia, praticava furtos, roubos, etc. suas ações rápidas e eficientes, provocou inquietação entre os proprietários do local. Sentindo-se inseguros, Mulungu e seus dois companheiros transferiam-se para as terras do engenho Sombinho, em Divina Pastora. Nascia assim o segundo “rancho”. Este cantou com quatro pessoas em face da chegada de frutuoso, escravo do Major Frederico do engenho Campinhos.

O que teria concorrido para o sucesso da fuga de João Mulungu? E mais, por que foi tão longa? Desconhecemos os anúncios publicados e outras medidas para capturá-lo. Mais é difícil imaginar acredita-lo inerte diante de uma “peça” tão valiosa!... Peça em pleno vigor físico, extremamente necessária, não só porque apta qualquer serviço, mas principalmente inflacionada devido a vigência do trafico interprovincial.

Inferimos: O êxito, se assim pudemos rotular, não se deveu exclusivamente a sua astúcia, a sua coragem e sua inteligência. Ou apenas as táticas de guerrilhas bem empregadas. Valeu-lhe a proteção de terceiros. Indagados sobre o apoio recebido, respondeu dessa maneira, ao chefe de policia Vicente de Paula caucaes: “ a única proteção com que ele e seus companheiros contaram, foi a de dois moços do termo de capela, do lugar lagoa funda , chamado um Teixeirinha (...) e outro conhecido por Yoyô, cunhado de Teixeirinha, os quais compram- lhe alguma coisa que ele necessitava, adiantando-lhe dinheiro até que lhes pudesse pagar e de uma vez levou-lhes(...) quatro bois para yoyô que os vende por quarenta mil reis e dois cavalos e uma burra para Teixeirinha que (...) os vende por sessenta mil reis”.

Independente do interesse comercial tão explicito, o apoio fundiu-lhe confiança e renovou suas energias para manter-se livre; especialmente durante os primeiros meses que perambulando a esmo estava exposto a toda sorte de pressões e adversidades.

As noticias corriam, espalhando-se tão rápidas quanto as ações do seu grupo. Os proprietários das vilas de capela, siriri e divina pastora já não eram os únicos intranqüilos. Por isso, do rancho nas terras do engenho sombinho deslocou-se, sucessivamente, para as matas do engenho batinga e limeira. A causa da mudança do terceiro para o quarto ocorreu em virtude da captura do quilombo Frutuoso e Malaquias, acusados do assassinato de João Croato da costa.

Segundo declarações do próprio Mulungu “depois desses acontecimentos teve que procurar outro coito(...) estabelecido nas matas do engenho limeira o qual continha vinte companheiros”(grifo nosso) inclusive uma mulher livre de nome conceição de

Surpreende-nos que agora nas matas do engenho limeira hajam vinte escravos quilombos. Até então, o número de pessoas não passava de quatro. Nossa hipótese salva melhor juízo, é de que houve uma integração do grupo de João Mulungu ao já existente.

Naturalmente, Mulungu não enfrentou dificuldades para associar-se porque a fama adquirida ao longo de três anos sem dúvida lhe serviu como passaporte.

Tudo faz crer que a permanência de Mulungu e dos outros vinte cativos nas matas do engenho Limeira não foi duradoura. Depreendemos do depoimento de Joaquim ao confessar “que ele já tinha combinado mudarem-se para as matas Pingui porque a tropa os está atormentando muito”.

Na realidade está idéia não foi concretizada, visto que do rancho de Limeira, deslocaram-se, em 1872, para as matas do Engenho Jurema, situado no termo de Rosário. Eis assim a origem do quinto rancho.

Entre o espaço compreendido daquela data ao ano de 1876 a documentação é silenciosa quanto a trajetória e dele e de seus companheiros.Interrogado sobre os furtos cometidos a, na maioria dos engenhos da zona do Cotinguiba, respondeu que os objetos furtados contam em gado, cavalos, ovelha, etc. Além de descriminar os locais assaltados citou, nominalmente, todos os escravos que o acompanhavam, ressaltando porém, que a grande maioria foi recapturada e devolvida aos antigos senhores e sua prisão foi efetuada pelo tenente João Batista da Rocha e o Juiz Municipal de Divina Pastora, Manuel Cardoso Vieira de Melo.

De Janeiro a Setembro do ano citado, João Mulungu foi submetido a vários interrogatórios nas vilas de Divina Pastora, Rosário, capela e na cidade de Aracaju. A exceção de Rosário, onde foi condenado em 12 de abril, a um ano de galé, 70 açoites e a tomar ferro ao pescoço por espaço de um mês, desconhecemos os demais processos condenatórios referentes aquelas localidades.

Diante do exposto levantamos estas questões. Mulungu realmente preferiu ser enforcado para não viver em cativeiro? Teria sido apenas condenado as galés e sua comutada para decapitação?
Nossa comunidade propositadamente questionava e não conclusiva. Razão porque fazemos estas indignações extraídas dos próprios autos de perguntas trabalhados.
a)Que tipo de quilombo tivemos em Sergipe?
b)Seriam predatórios em razão dos quilombolas viveram constantemente assaltando engenhos, fazendas e sítios?
c)As façanhas de João Mulungu poderiam diferencia-lo dos outros escravos quilombolas a ponto de torna-lo um líder na luta pela liberdade de seus irmãos?
d)Qual a diferença entre quilombos, ranchos e coitos, expressões usualmente mencionadas nos processos pelos escravos depoentes?

Tudo isso nos leva a crer que os escravos, em Sergipe, não foram coniventes com sua situação servil, usou de todas as maneiras de revolta, apesar de estruturarem de seus atos uma luta maior pela liberdade.


ANEXO 01

Segundo recenseamento feito do depoimento dos quatro escravos, os companheiros de Mulungu entre 1868 até 1876, foram:



ESCRAVOS PROPRIETÁRIO ENGENHO


01 - José da Silva Manoel Antônio de Morais -
02 - Manoel da Hora Cel. Manoel Gaspar de Melo Velho
03 - Frutuoso Major Frederico Campinhos
04 - Cornélio Cel. Antônio Brejo
05 - Maximiniano José Nobre -
06 - Laureano - Junco
07 - Jacinto João Bernardino -
08 - Victorio - Palma
09 - Alexandre - Lagoa Funda
10 - Cupertino - Junco
11 - José Maruim Isac Cana Brava
12 - Leonilo - Flor da Rosa
13 - Horácio - Bete
14 - José Quinzanga - Quinzanga
15 - Benedito - Palha
16 - Luís da Imbira - Brejo
17 - Barnabé - Oito Contos
18 - Belmínia - Cana Brava
19 - Francisca Guilherme de Tal -
20 - Thomasia - Santa Bárbara
21 - Luzia - Jurema
22 - Joaquina - Santa Bárbara
23 - Sinforósia - Serra Negra
24 - Vicencia Antônio Diniz -
25 - Conceição (livre) Divina Pastora -
26 - Joaquim João Gonçalves Franco -
27 - Antônio Teles - Farias
28 - Coutinho - Sítio
29 - Leonídio - Palmeira
30 - Mathias (missão de Japaratuba) - -
31 - Carlota - Santa Bárbara
32 - Francisco da Vila de Capela (livre) - -
33 - Hilário Manoel Raimundo Sítio Novo

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