segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

CONSTRUIN DO A LIBERDADE -(ANA CARLA DE JESUS) Revisita a Resistencia Negra Sergipana em João Mulungu


UNIVERSIDADE FERERAL DE SERGIPE
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
ANA CARLA DE JESUS
CONSTRUINDO A LIBERDADE: entre conflitos e
alianças, quilombolas (re)inventam sua história na Região
da Cotinguiba (1870-1879)
Cidade Universitária Prof° José Aloísio de Campos
São Cristovão
Março/2008
ANA CARLA DE JESUS
CONSTRUINDO A LIBERDADE: entre conflitos e
alianças, quilombolas (re)inventam sua história na Região
da Cotinguiba (1870-1879)
Monografia apresentada à disciplina Prática
de Pesquisa, como requisito básico para a
obtenção do grau de licenciado em história.
Orientador:Prof. Msc. Joceneide Cunha dos
Santos.
São Cristovão
2008
iii
A João Mulungu e os quilombolas sergipanos que
viveram na Região da Cotinguiba.
A minha família
iv
AGRADECIMENTOS
Este é um momento de reconhecer gestos e pessoas que foram essenciais no
decorrer da minha vida acadêmica. Mesmo correndo o risco de cometer algum lapso de
memória, não poderia aqui deixar de expressar minha gratidão.
Serei eternamente grata ao meu Deus por tamanha fidelidade para com a minha
vida, mais uma promessa do Senhor acaba de ser cumprida. Louvo e engrandeço a esse Deus
por ter me escolhido para fazer parte da Igreja Congregacional Vida com Cristo e ser ovelha
da Pastora Magdail, cujo zelo e orações foram fundamentais para mim.
Aprendi a admirar Joceneide Cunha, que como orientadora se mostrou uma
profissional exemplar. Seu incentivo, críticas, sugestões e intervenções foram de inestimável
valor para elaboração desta monografia.
Agradeço também a Severo D’Acelino pelo apoio dado, “abrindo as porta” da
Casa de Cultura Afro-Sergipana, fornecendo documentos primordiais e estimulando a
continuidade da pesquisa.
Durante a graduação fui presenteada com a amizade e carinho de pessoas que
jamais esquecerei, são elas: Patrícia, Gislaine, Leilane, Josimari, Eloiza , Aline e Maria.
Nossas viagens, seminários , conversas, risadas, choros ; serão momentos que ficarão
guardados em minha memória.
A base para eu alcançar essa conquista foi a minha família. Agradeço a minha
mãe Marlene por toda sua luta desde os primeiros anos da minha vida, sempre se esforçando
para que nunca me faltasse nada. Soube superar os momentos de dificuldades e hoje
comemoramos essa vitória.
A Fá (minha outra mãe), minha gratidão não é menor; Deus me presenteou com
sua vida, e nesses mais de vinte anos que moramos juntas, conseguimos transpor várias
barreiras e sei o quando desejou e lutou para vivenciar este momento. Seu total apoio no
v
decorrer da minha vida, suas renuncias ao meu favor , me tornaram a pessoa que sou hoje, e
com certeza essa conquista teve sua intensa participação.
Agradeço também ao meu avô, pelo seu carinho e “histórias”; a minha prima Iêda,
que jamais se negou a ajudar nos momentos em que precisei; e a meus irmãos Luciano,
Fabiano, Thaís, Tatiana e Aline.
A minha irmã Aline agradeço pelo incentivo, a ajuda na hora de digitar as
transcrições, a companhia que me fez durante as madrugadas que passei produzindo a
monografia, por agüentar minhas mudanças de humor, enfim agradeço pelo carinho.
vi
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS --------------------------------------------------------------------------------- vii
RESUMO ----------------------------------------------------------------------------------------------- viii
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------------ 9
CAPÍTULO I -------------------------------------------------------------------------------------------- 17
A HISTÓRIA DE UM NEGRO QUILOMBOLA ---------------------------------------------- 17
1.1 O NASCIMENTO DO CRIOULO JOÃO------------------------------------------------------- 17
1.2 MULUNGU REIVENTA SUA PRÓPRIA HISTÓRIA ---------------------------------------19
CAPÍTULO II ------------------------------------------------------------------------------------------- 23
A INTERAÇÃO ENTRE O MUNDO DOS QUILOMBOLAS E A SOCIEDADE
ENVOLVENTE ----------------------------------------------------------------------------------------23
2.1 UM BREVE PERFIL DOS QUILOMBOLAS SERGIPANOS ------------------------------23
2.2 ALIANÇA ENTRE QUILOMBOLAS AFRICANOS E CRIOULOS ----------------------28
2.3 A UNIÃO DOS QUILOMBOLAS COM OS ESCRAVOS LIBERTOS -------------------31
2.4 SENZALAS: UM REFÚGIO SEGURO --------------------------------------------------------33
2.5 PRESENÇA FEMININA: RELAÇÃO DAS MULHERES COM OS ESCRAVOS
QUILOMBOLAS ---------------------------------------------------------------------------------------36
2.6 A REDE DE SOCIALIZAÇÃO ------------------------------------------------------------------39
CAPÍTULO III -------------------------------------------------------------------------------------------41
SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E BARGANHAS NA
ZONA DA COTINGUIBA ---------------------------------------------------------------------------41
3.1 JOGO DE INTERESSES: FAZENDEIROS E QUILOMBOLAS ABREM ESPAÇO
PARA BARGANHAS ----------------------------------------------------------------------------------41
3.2 QUILOMBOLAS E FAZENDEIROS TRAVAM CONFLITOS ----------------------------48
3.3 REPRESSÃO: O APARATO MILITAR ENTRA EM CENA -------------------------------51
CONSIDERAÇÕES FINAIS ------------------------------------------------------------------------- 57
ANEXOS------------------------------------------------------------------------------------------------- 63
vii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1.1 : Saldo Migratório da População Escrava por Regiões ......................................... 18
Tabela 2.1: Sergipe (1850) - Distribuição por Regiões da População Livre e Escrava .......... 24
Tabela 2.2 : Composição Demográfica dos Escravos de Sergipe segundo a Nacionalidade
(1872) ......................................................................................................................................29
Tabela 3.1: Sergipe – Diversos Municípios : Plantel Médio de Escravos por Engenho..........41.
viii
RESUMO
A interação dos quilombos com o mundo escravista, na região da Cotinguiba, Província de
Sergipe, foi parcamente estudada. Visando contribuir para o preenchimento dessa lacuna, esta
monografia tem como objetivo analisar as relações travadas entre os quilombolas sergipanos
e a sociedade envolvente, na década de 1870. Faremos isso através da vida de João Mulungu e
seus companheiros. Utilizei um leque diverso de fontes históricas: inventários post-mortem,
processos-crime, ofícios expedidos e recebidos pela segurança pública, autos de perguntas,
relatórios provinciais, dentre outras. Poderemos notar que a maior parte dos quilombos não
estavam à margem da sociedade escravista, mas sim em contínua relação com ela.
Palavras chave: escravidão, quilombos , João Mulungu, sociedade envolvente
INTRODUÇÃO
O trabalho escravo impôs uma realidade social extremamente violenta. No
entanto, como afirma Sidney Chalhoub, homens e mulheres escravizados não se tornaram
passivos receptores dos valores senhoriais, ao contrário, os escravos pensavam e agiam
segundo premissas próprias ¹.
Esses cativos buscavam negociar espaços de autonomia com seus Senhores, no
entanto, quando essa negociação falhava abria-se espaço para fuga e possível formação de
quilombos, sendo esta uma das formas mais notórias de resistência dos escravos e que se fez
presente em quase todo território nacional ² .
Na Província de Sergipe , as notícias sobre existência de quilombos remetem ao
século XVII, como bem afirma Felte Bezerra3. Contudo, é a partir do século XIX que esses
quilombos começaram a se destacar. De acordo com Lourival Santos isso deve ter ocorrido
ou porque foram mais constantes nessa época, ou porque a documentação preservada permite
a constatação de sua existência4; ou ainda devido a uma maior presença de africanos nas terras
sergipanas.
O objetivo dessa monografia, portanto, é analisar as relações travadas entre os
quilombolas sergipanos e a sociedade envolvente, pois partimos do pressuposto que os
quilombos não eram redutos de negros marginalizados e isolados da sociedade, ao contrário,
os quilombolas buscaram , sempre que possível, uma interação com o “mundo” escravista.
Faremos isso através da vida de João Mulungu, seus companheiros e companheiras.
Pretendemos ainda descrever e analisar o cotidiano e as experiências desses sujeitos.
_________________________
¹CHALHOUB,Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.São Paulo:
Companhia das letras, 1990.
²Ver sobre o assunto REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio:história dos
quilombos no Brasil.São Paulo:Companhia das letras, 1996
3 BEZERRA, Felte.As Etnias Sergipanas. Aracaju:J.Andrade , 1984.p.107
4 SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.Aracaju:n° 31, 1992,p. 32.
10
Mulungu é aqui retratado como um sujeito que representa dezenas de outros
escravos, que assim como ele, não se mantiveram passivos aos desígnios do Senhor de
Engenho. A pesquisa não pretende se concentrar no indivíduo examinado em si mesmo, mas
apenas se valer dele para examinar o seu “em torno”5. João Mulungu é um pequeno
fragmento através do qual buscamos perceber realidades mais amplas, e compreender a
configuração social na qual encontrava-se inserido.
A historiografia tradicional prioriza a história vista por cima, ou seja, valoriza
figuras ilustres como generais, estadistas , enfim, aqueles que são considerados grandes
homens. Muitos historiadores deixam de lado a história de personagens comuns, esquecendose
que estes também constroem a história. A nova história, por sua vez, busca considerar tanto
a “história de cima” como também a “vista de baixo”6. Foi com o intuito, de valorizar os
sujeitos até então anônimos, ou pouco celebrados pela historiografia que resgatamos a história
do quilombola João Mulungu.
Para algumas pessoas ligadas ao Movimento Negro, como Severo D’Acelino,
Mulungu é um símbolo de resistência, o verdadeiro Herói Negro Sergipano, para outros se
trata de apenas mais um negro que foi escravizado, e que como outros fugiu para se tornar
um quilombola, defendendo essa concepção temos a historiadora Maria Nely, para a qual
“tributar a João Mulungu o título de líder dos quilombolas e herói negro é um procedimento
precipitado e reducionista7”.
Outro a corroborar com a idéia da historiadora Maria Nely é o historiador
Petrônio Domingues, este em artigo publicado no Jornal da Cidade, aborda a luta pelo fim do
cativeiro em Sergipe, ressaltando o papel desempenhado pelos ativistas do movimento
abolicionista e pelos próprios escravos.No decorrer de seu artigo cita o quilombola João
Mulungu, como um daqueles que lutou pela liberdade através da “rebeldia” e afirma que
__________________________
5BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens.3ª ed. Rio de Janeiro: vozes,
2004.
6 Sobre a chamada “história vista de baixo” cf. BURKE, Peter. A Escrita da História : Novas Perspectivas. São
Paulo: Editora da UNESP, 1992.
7 SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José Alves, uma
história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J.Andrade,1997,p.121.
11
Mulungu não deve ser tratado como herói , pois “antes e sobretudo depois de sua
morte surgiram outros ‘mulunguns’, com histórias tão ou mais fabulosas do que a dele8”
Contudo, independente do título que lhe queiram conferir, é inegável que
Mulungu se tornou um mito, um emblema contra a discriminação racial, um referencial de
luta para o Movimento Negro em Sergipe, embora muitos não o reconheçam como tal.
Atualmente a Casa de Cultura Afro-Sergipana , tendo a frente Severo D’Acelino,
promove uma ação de resgate e revitalização a respeito da figura de João Mulungu, tentando
fazer com que esse quilombola saía do anonimato e passe a ser reconhecido. Severo
D’Acelino tem desenvolvido alguns trabalhos, como o intitulado João Mulungum: vida e
morte de um negro herói sergipano9, onde narra, em versos, a saga do quilombola Mulungu.
Uma importante conquista foi o reconhecimento de João Mulungu como Herói
Negro, pela lei N° 407 de 08 de agosto de 1990, em Laranjeiras. Dois anos depois , em
Aracaju é sancionada a lei 1.856 de 14 de julho, na qual Mulungu também foi reconhecido
como Herói Negro e o dia 19 de janeiro (data de sua captura) é instituído como Dia Municipal
da Consciência Negra10.
Ainda por iniciativa da Casa de Cultura Afro-Sergipana, em 2002 foi implantado
o Projeto Cultural de Educação “João Mulungu vai às escolas” em parceria com a Secretária
de Estado da Educação. Esse projeto buscou difundir a importância do negro na sociedade
sergipana, promover a auto-estima e construção da identidade cultural dos alunos, discutir o
racismo nas escolas, promover debates sobre a resistência negra em Sergipe e discussões
sobre a política de ações afirmativas e compensatórias11.
Academicamente não existem trabalhos que tenham o personagem citado como
eixo principal. A historiadora Maria Nely , em um de seus estudos buscou traçar uma
____________________________
8 DOMINGUES,Petrônio. 13 de Maio e os embates abolicionistas. Aracaju, 2007. disponível em: http://
www.jornaldacidade.net Acesso em 14 de março de 2008.
9 D’ACELINO.Severo.João Mulungum: vida e morte de um negro herói sergipano. Série memória negra
Sergipana ; n° 01: GRFACACA.
10/11 Informações obtidas através do Memorial João Mulungu, produzido por Severo D’Acelino.
12
biografia sobre o abolicionista Francisco José Alves, e em alguns momentos a autora retratou
a questão da resistência negra através da formação de mocambos, onde cita, dentre outros
quilombolas, João Mulungu12. A exemplo de Nely temos também Lourival Santos, que em
sua pesquisa sobre os quilombos sergipanos, aborda o caso do quilombola João Mulungu,
mas não tem a pretensão de torná-lo o eixo central de seu trabalho13. Por todos os motivos
citados, acreditamos ser relevante transformá-lo no tema central deste trabalho.
O marco espacial desta pesquisa é a região da Cotinguiba, que compreende os
municípios cortados pelas bacias hidrográficas do Rio Sergipe e do Rio Japaratuba14. A
escolha de tal região se deve ao fato da mesma ser considerada a mais importante na produção
açucareira da Província , contando portanto, com uma maior concentração de escravos.
Consequentemente , foi a região onde se pode notar uma maior resistência dos escravos ao
sistema que lhes foi imposto.A escolha dessa região também está atrelada ao fato de ter sido a
área em que Mulungu mais atuou.
Optamos por delimitar o marco temporal para a segunda metade do século XIX,
mais especificamente, a década de 1870, por representar o período de desagregação do
escravismo e relativa estagnação da economia açucareira. Segundo Josué Modesto dos Passos
Subrinho, na década de 1870, o açúcar participou, em média, com 77% do valor total das
exportações sergipanas, sendo que na década de 1850 correspondia a 91,1% das
exportações15. E principalmente porque esse foi o período de atuação do quilombola João
Mulungu.
Segundo Lourival Santana Santos e Maria Thetis Nunes, na década de 1870
também se verificou uma maior tendência dos escravos para fugirem e se organizarem em
quilombos; principalmente após a promulgação da lei de 28 de setembro de 1871, Lei do
Ventre Livre, que dava liberdade os filhos de escravos nascidos após esta data15.
__________________________
12 SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José Alves, uma
história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J.Andrade, 1997, pp. 107-132.
13 SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju: n° 31, 1992, pp. 31-43.
14cf.PASSOS SUBRINHO, Josué M. Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no
Nordeste açucareiro (1850-1888). Aracaju: FUNCAJU, 2000, p.57.
15 PASSOS SUBRINHO, Josué M. op.cit. pp. 36-40.
16cf. NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro,2006,pp.59-60.
SANTOS, Lourival Santana. Op.cit. pp. 31-43.
13
Contudo, os cativos interpretavam a lei como se fosse abrangente a todos os escravos. Ao
perceberem que ela não atendia as suas aspirações, houve um aumento das fugas. O
Presidente Luiz Álvares de Azevedo, em relatório à Assembléia Provincial , no ano de 1872,
registrou:
“Alguns escravos, mal aconselhados e imbuídos de falsa idéia de que se acham
todos livres pela Lei n° 2.040 de setembro (Lei do Ventre Livre); e que não gozam
de sua liberdade porque os senhores a isso se opõem, se têm refugiado nas matas, e
reunidos em quilombos (...)17” .
A historiografia da escravidão no Brasil remete ao final do século XVII, pois os
cronistas coloniais, dentre eles Gaspar Van Barleu, já destacavam a resistência dos
quilombolas, notadamente dos Palmarinos, sendo que um dos principais objetivos era
enaltecer a ação das forças repressoras, do aparato militar18. Posição que prevaleceu até o
século XIX.
Nos anos 30 do século XX, seguindo os estudos de Nina Rodrigues, Arthur
Ramos e Edison Carneiro, os estudos sobre quilombos assumem um viés culturalista, segundo
os mesmos, o objetivo dos quilombolas seria restaurar a África, tratar-se-ia de uma reação
contra-aculturativa19.
Por volta da década de 1950, a chamada “escola paulista”, que reúne autores
como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni , Florestan Fernandes e Emília Viotti da
Costa trataram a resistência escrava como algo secundário, pois procuravam enfatizar a
coisificação do escravo. No entanto, Clóvis Moura, Luís Luna, José Alípio Goulart e Décio
Freitas, colocaram em destaque a resistência escrava, embora atrelada a corrente marxista, na
qual os quilombos passam a serem vistos como uma forma de negar o regime escravista
através da construção de uma sociedade alternativa20.
____________________
17 NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro,2006,p.59.
18 REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio:história dos quilombos no Brasil.São
Paulo:Companhia das letras, 1996, p.11.
19/20 Adelmir Fiabani faz um apanhado historiográfico a respeito do que já se escreveu sobre os quilombos
brasileiros no período de 1532-2004. Vide: FIABANI, Adelmir.Mato, Palhoça e Pilão: O quilombo, da
escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004).São Paulo:Expressão Popular,2005. Dentre outros
trabalhos que fazem esses apanhado historiográfico cito: REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos.
Liberdade por um fio:história dos quilombos no Brasil.São Paulo:Companhia das letras, 1996.
14
A nova historiografia da escravidão, no que concerne a questão dos quilombos
não abandonou a problemática cultural nem a influencia marxista, mas vem tentando elaborar
trabalhos que renovem as discussões e os quilombolas passem a ser vistos como sujeitos de
sua própria história ; temos como exemplo João José Reis, Flávio dos Santos Gomes, Eduardo
Silva, dentre outros21.
Pesquisadores Sergipanos também não se mantiveram alheios à discussão sobre
quilombos na Província da Sergipe. Felte Bezerra, por exemplo, alia-se a corrente culturalista,
uma vez que defende que as tentativas de resistência dos negros em Sergipe, representaram
um fenômeno contra-aculturação22.
A historiadora Maria Nely Santos, retrata os “mocambos” existentes na Província
de Sergipe como um movimento espontâneo e desorganizado, incapaz de subverter a ordem
escravista. Para a citada historiadora, os “mocambos” também são vistos como algo
marginalizado. Nely opta pela expressão mocambo em detrimento do termo quilombo, pois de
acordo com a mesma, não se trata simplesmente de uma variante terminológica, mas sim de
recolocá-la no seu verdadeiro contexto23.
A opção de Maria Nely Santos parece estar atrelada ao fato dos quilombos
sergipanos não serem fixos, terem um caráter predatório e contarem com um número reduzido
de escravos, se comparado a quilombos de outras regiões brasileiras.
O artigo de Amâncio Cardoso , Escravidão em Sergipe: fuga e quilombos – século
XIX24; retrata e corrobora para a análise do fenômeno quilombola como símbolo de
resistência a escravidão,e não apenas um fenômeno contra-aculturação, como foi defendido
por Felte Bezerra.
_______________________
21 Vide: FIABANI, Adelmir.Mato, Palhoça e Pilão: O quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes
(1532-2004).São Paulo:Expressão Popular,2005.
22BEZERRA, Felte.As Etnias Sergipanas. Aracaju:J.Andrade , 1984.p.104.
23 SANTOS, Maria Nely. A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco José Alvas,uma
história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J.Andrade,1997,pp. 107-132.
24 CARDOSO, Amâncio. Escravidão em Sergipe : fugas e quilombos , século XIX. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju,n° 34 , 2003-2005, pp. 55-73.
15
O historiador Lourival Santana Santos, também é um dos estudiosos que retratam
a questão dos quilombos em Sergipe. Na concepção desse historiador, os quilombos
sergipanos “em nenhum momento promoveram uma transformação social revolucionária25”.
Buscaremos inserir este trabalho no âmbito da nova historiografia da escravidão,
e nessa proposta, o escravo negro aquilombado, não será um testemunho mudo , ao contrário
representará um elemento vivo, dinâmico, capaz de agenciar sua própria vida.
Para tanto, foi utilizada fontes primárias, tais como: inventários post-mortem,
processos-crime, ofícios expedidos e recebidos pela segurança pública, autos de perguntas e
relatórios provinciais26.
Grande parte dessas fontes faz parte dos chamados “documentos da repressão”, ou
seja, foram produzidos por membros da força repressora, chegando até nós através de filtros e
intermediários que os deformam; porém isso não os torna inutilizáveis, pelo contrário, cabe ao
historiador ler as “entrelinhas” para desvendar e abrir caminhos para o estudo dos escravos
em fuga.
Não devemos esquecer que para se extrair algo dos documentos, é preciso que
coloquemos algumas indagações. O documento oferece respostas de acordo com as perguntas
que lhe são feitas. Ele não fala por si mesmo; apenas apresenta uma situação que foi
registrada por alguém com intenção específica. Portanto, pretendemos fazer uso do método
indiciário proposto por Ginzburg, no qual , apenas observando atentamente e registrando
com minúcia os fatos é possível elaborar “histórias”27.
Apesar da dificuldade encontrada na coleta das fontes primárias , o presente
trabalho conta com um grande volume de documentos produzidos no século XIX, a
___________________________
25 SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.Aracaju:n° 31, 1992,p. 42.
26Esses documentos foram encontrados no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Arquivo Público do
Tribunal Judiciário, Arquivo Público do Estado de Sergipe e Casa de Cultura Afro-Sergipana.
27 GUINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário.São Paulo:Companhia das Letras, 1989, pp.
143-179.
16
importância desses documentos não é apenas quantitativa; trata-se de uma documentação de
importante valor qualitativo, uma vez que, através dela podemos ampliar nosso conhecimento
sobre os quilombos sergipanos, como também tais fontes possibilitam uma maior reflexão a
respeito das relações travadas pelos quilombolas com a sociedade envolvente.
Esta monografia é composta por três capítulos. No primeiro deles buscamos
apresentar a história de um quilombola sergipano: João Mulungu. Nesse capítulo ocorre a
descrição da vida desse crioulo, que se tornou, em meio ao regime escravocrata, autor de sua
própria história.
O segundo capítulo aborda o envolvimento dos quilombolas com a sociedade
envolvente. Inicia-se com o perfil dos quilombolas sergipanos, onde buscamos perceber quem
eram esses sujeitos que optavam pela vida nos quilombos, bem como quais as motivações
para tomarem essa atitude. Em seguida ocorre uma análise das alianças que os quilombolas
celebravam com diversos grupos sociais, em meio ao sistema escravista vigente.
O terceiro e último capítulo retrata a relação dos quilombolas com os proprietários
de engenhos , onde evidenciamos que ao lado daqueles que buscaram reprimir a formação de
quilombos também existiu alguns Senhores que apoiavam os quilombolas, dando-lhes
proteção. Perceberemos neste capítulo o jogo de interesses que envolvia quilombolas e
Senhores de Engenho. Para finalizar o capítulo temos uma exposição sobre a ação das forças
repressoras contra os quilombos.
CAPÍTULO I
A HISTÓRIA DE UM NEGRO QUILOMBOLA
1.1 O NASCIMENTO DO CRIOULO JOÃO
Por volta de 1851 nascia no Engenho Piedade, freguesia de Itabaiana, o negro
João; filho de Maria, escrava de José Inácio do Prado, proprietário do Engenho “Quidongá”.
Nascera, portanto, dentro do sistema escravocrata, e sua sorte parecia já estar traçada. Seria
mais um negro a ser inserido no trabalho compulsório vigente28.
Segundo Passos Subrinho, na década de 1850, o então Município de Itabaiana
abrangia vasta área do agreste-sertão, no entanto, possuía um reduzido número de engenhos
de açúcar, cerca de 29 . Essa região era ocupada principalmente por uma agricultura de
subsistência e pecuária, bem como pelo cultivo do algodão29.
Ainda de acordo com o citado autor, o Agreste-Sertão de Itabaiana foi à região
mais caracteristicamente exportadora líquida de escravos. Em termos líquidos foram
exportados, no período de 1873-86 , 1.388 escravos, que em termos relativos corresponde a
39,99% da população escrava matriculada em 187330. A tabela 1.1 demonstra de forma mais
detalhada o saldo migratório da população escrava.
________________________
28 As informações expostas tem como base documental as transcrições dos autos de perguntas feitos ao escravo
João Mulungu, quando este foi preso. Essas transcrições foram consultadas no acervo da Casa de Cultura Afro-
Sergipana.
29 Ver PASSOS SUBRINHO, Josué M. Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no
Nordeste açucareiro (1850-1888). Aracaju: FUNCAJU, 2000, pp.76-79.
30 Ver PASSOS SUBRINHO, Josué M. op.cit.pp.117-142.
18
Tabela 1.1 : Saldo Migratório da População Escrava por Regiões
Regiões 1873-82 1882-86 1873-86
Cotinguiba 1.102 -71 1.031
Mata Sul -277 365 88
Agreste-Sertão do S.Francisco -315 56 -289
Agreste-Sertão de Itabaiana -1.013 -375 -1.388
Agreste-Sertão Sul -152 -213 -365
Total -655 -238 -893
Fonte: Passos Subrinho, 2000, p.145.
João será um dentre os inúmeros escravos que foram exportados da região de
Itabaiana. Ainda muito jovem foi vendido a João Pinheiro de Mendonça, dono do Engenho
Mulungu, no Termo de Laranjeiras. Por isso, “Mulungu” foi o nome com o qual João passou
a ser identificado ao longo de sua vida.
Laranjeiras, situada na Zona da Cotinguiba; possuía em torno de 73 engenhos na
década de 1850, enquanto Itabaiana contava com uma média 29 engenhos. Em 1875 o
número de engenhos em Itabaiana é reduzido para 16, enquanto Laranjeiras passa a contar
com 5431. A partir dessa constatação percebe-se que havia uma maior demanda pela mão-deobra
escrava na Zona da Cotinguiba, fato que pode ter motivado a venda de escravos para essa
região.
Ao chegar a fazenda de João Pinheiro passou a exercer a profissão de agricultor,
e executar outros serviços que o seu Senhor ordenasse, como por exemplo o de colocar fogo
na fornalha, serviço que João considerava pesado, pois na época era muito jovem e esses
trabalhos acabavam sobrecarregando-o. Além disso tinha que conviver com os constantes
castigos 32.
Por não aceitar essa situação, João resolve ir em busca de um outro Senhor. Por
duas vezes chegou a fugir de casa, mas João Pinheiro deixava claro para aqueles que
demonstravam interesse em comprá-lo que não o venderia.
_______________________________
31 Ver PASSOS SUBRINHO, Josué M, op.cit ,p.58.
32 Informações presentes na transcrição do auto de perguntas feito ao escravo João Mulungu em 1876.
19
João José Reis e Eduardo Silva definem esse tipo de fuga como sendo de caráter
reivindicatório, onde os escravos estavam em busca de melhores condições de trabalho e vida,
e para tanto, assumiam uma posição não colaboracionista para pressionar senhores
indesejáveis a vendê-los33. Esse sem dúvida foi o caso do escravo João.
Contudo, não obteve êxito ; e já não suportando mais a maneira com a qual seu
Senhor o tratava; João tentou mais uma fuga. Dessa vez não buscava um outro Senhor; agora
tinha por objetivo “entranhar-se pelas matas”, na época ele tinha por volta de 17 anos, era o
ano de 1868.
A fuga que a princípio tinha um caráter apenas reivindicatório; visava agora o
rompimento. Porém como bem afirma Reis e Silva , “a escravidão, não terminava nas porteiras
de nenhuma fazenda em particular, mas fazia parte da lei geral da propriedade e, em termos amplos,
da ordem socialmente aceita34”.
1.2 MULUNGU REIVENTA SUA PRÓPRIA HISTÓRIA
Com a decisão de fugir definitivamente das amarras de João Pinheiro; o escravo
João, que a partir desse momento passa a ser conhecido por Mulungu, mudou a história de
sua vida. Aquele escravo que pensava ter nascido com um futuro pré-determinado, nos
demonstra que a vida do negro não era algo inalterável, eles souberam agenciar de diversas
formas suas vidas e construir suas histórias.
Após sua fuga , João Mulungu passou a morar em diversos ranchos , o primeiro
deles foi o Boa Vista, no termo de Capela; onde morava com José da Silva e Manoel da
Horta.Passaram dois meses ali aquilombados , indo em seguida para as matas do Engenho
Sumbinho, nas proximidades de Siriri.Um quarto quilombola chamado Frutuoso se junta a
eles.
_______________________________
33 REIS;João José & SILVA; Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.63.
34 REIS & SILVA , op. cit, p.66.
20
Mulungu, passou por diversos pontos da Província de Sergipe, além dos citados
anteriormente, esteve aquilombado também em Maruim, Itaporanga, Laranjeiras, Rosário do
Catete, Japaratuba, Divina Pastora, e por certo outras áreas35. Como podemos notar as ações
de Mulungu e seu grupo não ficaram restritas a região da Cotinguiba; abrangeram uma grande
área.
Vários escravos foram seus companheiros, dentre eles Manuel Jurema
(considerado pelas autoridades locais como sendo o seu fiel companheiro), Cornélio,
Maximiano, Lauriano, Jacinto, Victorio, Alexandre, Cupertino, José Maroim, Leonilo,
Horácio, José Quisanga, Benedito, Luiz, Barnabé, Belmira, Francisca, Thomasia, Luzia,
Joaquim, Vicência, Carlota , Conceição e Anna Rita 36.
Esses quilombolas eram oriundos de diversos engenhos, localizados em diferentes
cidades da Província. Entre eles haviam escravos libertos, como é o caso de Conceição, como
também ocorria a junção de africanos e crioulos nos grupos que se formavam.
Mulungu manteve relações afetivas com algumas de suas companheiras
quilombolas, como foi o caso de Anna Rita, que declarou ser casada, mas que durante o
_____________________________
35 Diversos são os ofícios expedidos pelas autoridades locais e autos de perguntas que fazem referência a
presença de Mulungu e outros e quilombolas em vários pontos da Província na década de 1870. Dentre eles
temos: um auto de perguntas , de novembro de 1871, feito a escrava Limôa, no qual temos a notícia que
Mulungu estava em Japaratuba - Arquivo público do Estado de Sergipe, SP1, pacotilha 176.
Em um outro auto de perguntas, em 22 de Dezembro de 1872, o escravo Francisco declarou que João Mulungu e
seus companheiros estavam no Termo de Divina Pastora - Arquivo público do Estado de Sergipe, SP1 –
pacotilha 178.
No ofício expedido pelo tenente João Batista da Rocha Banha,em 15 de julho de 1873, temos a informação que
Mulungu e seu grupo estavam na Vila do Rosário – Arquivo público do Estado de Sergipe, SP1 – pacotilha 564.
Temos ainda o auto de perguntas feito ao próprio João Mulungu, no qual assume ter percorrido diversas áreas da
província de Sergipe.
Podemos ainda obter mais informações sobre os locais onde Mulungu formou quilombos através do Memorial
João Mulungu produzido por Severo D’Acelino, onde o autor narra a saga desse quilombola.
36Os nomes dos companheiros de Mulungu estão presentes no auto de perguntas feito ao escravo João Mulungu
(a transcrição deste documento encontra-se disponível no acervo da Casa de Cultura Afro-Sergipana);
Podemos ainda obter essas informações através dos seguintes documentos que fazem parte o acervo do Arquivo
Público do Estado de Sergipe: SP1 – pacotilha 705; SP1 – pacotilha 176; SP1 – pacotilha 178 ; SP1 –
pacotilha 373; SP1 – pacotilha 75; SP1 – pacotilha 298 ; CM3 – pacotilha 39.
O Memorial João Mulungu, produzido por Severo D’Acelino também faz referencia aos companheiros de
Mulungu.
21
tempo que esteve fugida se tornou amásia de João Mulungu; tal fato demonstra certa
autonomia da mulher escrava em romper a subordinação que, teoricamente, deveria ter para
com o seu companheiro. A escrava Vicência também confirmou um envolvimento afetivo
com o citado escravo. Essas duas escravas tinham em torno de trinta e cinco anos; e segundo
as autoridades locais Mulungu possuía uma outra companheira de treze anos de idade37, nessa
época Mulungu tinha por volta de vinte e dois anos.
Momentos de lazer e de religiosidade também faziam parte da vida desses
quilombolas. Na noite de Natal do ano de 1872, Mulungu e alguns companheiros passaram
toda a noite se divertindo em um batuque38 . Possivelmente a festa revigorava os escravos e
ajudava a diminuir as tensões39. Pois como já foi dito, a escravidão não terminava nas
porteiras de uma fazenda, ou seja, fugir para liberdade não significava ser livre. Portanto,
esses quilombolas para melhor conviver com as tensões e medos, buscavam reconstruir
espaços de identidade coletiva. Os batuques, a religião, serviram como um elemento
agregador entre esses escravos.
Para sobreviverem aquilombados, esses escravos chegaram a trocar carne por
farinha com alguns escravos das senzalas; praticavam furtos a fazendas e transeuntes;
roubavam animais (bois, cavalos, galinhas, ovelhas) para trocarem por alimentos e dinheiro.
O resultado desses furtos eram comercializados; o grupo de Mulungu, por exemplo, negociou
com alguns ciganos a venda de cavalos; por preços que variavam de cinco mil a dez mil réis,
quantia que segundo Mulungu nunca receberam, o valor máximo que esses ciganos pagaram
foram dois mil réis40.
______________________
37 Sobre a escrava Anna Rita ver o auto de perguntas feito a mesma, no dia três do mês de janeiro de
1873.(Arquivo Público do Estado de Sergipe, SP1 – pacotilha 373).
O auto de perguntas da escrava Vicência, foi feito no dia 04 do mês de janeiro de 1873. (Arquivo Público do
Estado de Sergipe - SP1 – pacotilha 373).
Sobre a companheira de Mulungu que tinha 13 anos de idade, cf. Arquivo Público do Estado de Sergipe - SP1 –
pacotilha 564)
38Maria , uma mulher forra, que exercia a profissão de costureira assumiu para as autoridades ter feito parte do
grupo que foi batucar na noite de natal, e citou os nomes dos escravos que participaram desse batuque. Cf. auto
de perguntas feito a Maria em 04 de janeiro 1873-Arquivo Público do Estado de Sergipe - SP1 – pacotilha 373.
39 cf. SANTOS, Joceneide Cunha dos.Entre farinhadas,procissões e famílias:a vida de homens e mulheres
escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888).Salvador, 2004.Dissertação de Mestrado – Universidade
Federal da Bahia.pp.70-78.
40 Ver auto de perguntas feito ao escravo João Mulungu.
22
Homens livres também participavam das negociações; em Riachuelo, Firmino
mandava João Mulungu furtar cavalos para vender-lhe. Mulungu chegou a vender para ele um
cavalo no valor de vinte cinco mil réis, mas o quilombola diz ter feito um mau negócio, pois
acabou recebendo apenas quinze mil réis41.
Mulungu costumava utilizar como meio de transporte cavalos, e para se defender
estava sempre munido de armas, como facões, facas, pistolas, espingardas e outros
instrumentos que conseguisse adquirir através dos furtos ou das negociações42.
Como poderemos perceber no decorrer desse trabalho, os quilombolas
estabeleceram alianças com a sociedade envolvente, fato que possibilitou a existência
contínua de quilombos na Província de Sergipe, notadamente na região da Cotinguiba.
Mulungu e os outros quilombolas sergipanos souberam reconstruir suas histórias; traçar seus
próprios caminhos em meio ao sistema em que estavam inseridos.
João Mulungu passou a ser tido pelas autoridades locais como o mais audaz ,
chefe dos quilombolas sergipanos; esse título lhe foi dado pelo Presidente da Província João
Ferreira de Araújo Pinho, em 187643. Talvez tal definição explique o porquê desse quilombola
ser um dos escravos fugidos mais procurados, chegando a ser cogitado pelas autoridades que
sua prisão representaria o fim dos quilombos na Província de Sergipe Del Rey. Fato que não
foi comprovado, mesmo após sua prisão, os quilombos sergipanos continuaram a existir.
Mulungu passou por volta de oito anos fugido; e durante todo esse tempo as
autoridades não cessaram as buscas para conseguir capturá-lo. Inúmeras diligências foram
montadas, espias foram contratados, gratificações foram dadas , mas somente em 1876, esse
objetivo foi alcançado.
______________________________
41 Informações presentes no auto de perguntas do escravo Evaristo, em março de 1872 (Arquivo Público do
Estado de Sergipe - SP1 – pacotilha 705); e no ofício expedido por João Batista da Rocha Banha , em janeiro de
1876. (Arquivo Público do Estado de Sergipe - CM3 – pacotilha 39).
42 Ver auto de perguntas feito ao escravo João Mulungu, em 1876.
43 Relatório do Presidente de Província João Ferreira de Araújo Pinho, em 1° de março de 1876.
23
Mulungu passou por volta de oito anos fugido; e durante todo esse tempo as
autoridades não cessaram as buscas para conseguir capturá-lo. Inúmeras diligências foram
montadas, espias foram contratados, gratificações foram dadas , mas somente em 1876, esse
objetivo foi alcançado.
O presidente da Província , João Ferreira de Araújo Pìmho, chegou a divulgar em
março de 1876 que Mulungu preferiu ser enforcado em praça pública, do que voltar a servir
seu antigo Senhor.Contudo, até o final do ano a documentação nos revela que Mulungu estava
vivo, respondendo processos em algumas regiões da Província. Chegou a ser interrogado no
decorrer do ano de 1876 em Aracaju, Divina Pastora, Capela e Rosário44 .
Ao que tudo indica Mulungu não foi enforcado em praça pública, até porque
segundo o pesquisador Pedrinho dos Santos, as últimas execuções de pena de morte na
Província de Sergipe aconteceram em 1858, na Vila de Lagarto. Daí para frente às sentenças
arbitradas pelos tribunais sergipanos passaram a ser convertidas em galés perpétuas ou em
prisão de vinte anos com trabalhos forçados45.
Segundo informações obtidas a partir do mapa de crimes perpetrados por
escravos , João Mulungu foi condenado em 12 de abril de 1876 a um ano de galés. Tal
sentença foi sancionada pelo Juiz Municipal da Vila de Rosário46.
Após sua condenação os documentos silenciam acerca do que ocorrera com João
Mulungu, não se sabe ao certo se ele chegou a cumprir toda a pena, e se a cumpriu o que
ocorreu com esse escravo posteriormente. Talvez tenha retornado a servir João Pinheiro,
como também pode ter sido vendido para outro proprietário de engenho da Província de
Sergipe ou de fora dela. Existe ainda a possibilidade de esse quilombola ter falecido enquanto
cumpria sua condenação.
________________________
44 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 – pacotilhas 575 ; 585 e 636.
45 SANTOS, Pedrinho dos. A pena de morte em Sergipe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe. Aracaju,n° 33 , 2000-2002, pp.175-197.
46 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1- pacotilha 378, Mapa dos crimes perpetrados por escravos datado
de 03 de maio de 1876.
CAPÍTULO II
A INTERAÇÃO ENTRE O MUNDO DOS QUILOMBOLAS E A
SOCIEDADE ENVOLVENTE
2.1 UM BREVE PERFIL DOS QUILOMBOLAS SERGIPANOS
A utilização da mão-de-obra escrava se difundiu por todas as regiões da Província
de Sergipe, e possivelmente foi utilizada em todos os setores da economia. Havia uma maior
concentração dessa mão-de-obra na Zona da Mata, especialmente na região da Cotinguiba,
que possuía na década de 1850, 39,09 % dos escravos sergipanos 47.
Tabela 2.1: Sergipe (1850) - Distribuição por Regiões da População Livre e Escrava
Regiões escravos livres escravos/livres
Cotinguiba 21.687 (39,09%) 40,088 (24,49%) (0,54)
Mata Sul 12.644 (22,60%) 47,490 (29,01%) (0,27)
Agreste-Sertão do S.Francisco 13.506 (24,14%) 37,508 (22,91%) (0,36)
Agreste-Sertão de Itabaiana 4.266 (7,62%) 13,933 (8,51%) (0,31)
Agreste-Sertão Sul 3.661 (6,54%) 26,677 (15,07%) (0,15)
Total 55.944 (100,00%) 163,696 (100,00%) (0,34)
Fonte: Passos Subrinho, 2000, p.76.
Como podemos notar através da tabela 2.1, nessa região para cada 100 habitantes
livres havia 54 escravos; nenhuma outra região da Província se aproximava desse índice de
concentração da propriedade escrava. Tal fato ,por certo, se deve à concentração de sua
principal atividade econômica, na época, a agroindústria açucareira48.
Em 1873, na Zona da Cotinguiba, havia 7.631 escravos e 7.575 escravas; sendo
que a maior parte da população cativa possuía entre 21 e 40 anos49. Nessa época prevaleciam
os escravos crioulos em detrimento dos africanos. Segundo Mott os cativos oriundos da
África nunca devem ter ultrapassado 1/3 da escravaria total de Sergipe50.
___________________________
47/48 Ver PASSOS SUBRINHO, Josué M, op.cit ,pp.75-77.
49 Ver esses dados em PASSOS SUBRINHO, Josué M, op.cit ,pp. 422-423.
50Ver em MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986,
pp. 139-150.
25
Foi nessa região que pudemos constatar um elevado índice de resistência dos
trabalhadores escravizados, notadamente porque nessa área havia uma maior concentração de
cativos e força policial. Uma das formas de contestação por parte dos escravos foi a fuga e
formação de quilombos, que contou com a participação não só de escravos do sexo
masculino, como também de escravas fugidas.
Através do depoimento da escrava Vicência , em 1873, podemos notar a presença
de homens e mulheres nos quilombos:
recorda-se de sempre ali permanecerem os escravos seguintes:João Mulungu,
Maximiano, Guilherme ,Marcolino Joaquim, Antonio , Venceslau, Mathias, (...) e
mulheres: Conceição e Ignez. Belmira Francisca e Carlota, cativas estas três51 .
A escrava Limôa, por exemplo, ao responder um auto de perguntas quando foi
capturada no ano de 1871, após passar um tempo aquilombada, deixou clara a presença de
várias mulheres:
A vista disto dirigiu-se ela pela estrada (...) e antes que ali chegasse
encontrou sete escravas que andavam fugidas, e [...] seguiu com elas até
a mata do dito Engenho S.José (...) onde se reuniram com outros que ali se
reuniram com outros que ali se achavam que ao todo formavam o
mínimo de vinte 52.
Algo que chama a atenção nesses trechos dos autos de perguntas é quando a
escrava Vicência cita a presença das mulheres Conceição e Ignez , e das cativas Belmira ,
Francisca e Carlota. Isso nos permite inferir que as primeiras eram livres ou forras.
Notamos, portanto, que os quilombos não eram tão somente um reduto de negros
fugidos, como a historiografia tradicional da escravidão costuma defender, e sim um local de
refúgio para aqueles que estavam a margem da sociedade escravocrata, sejam escravos,
pessoas livres ou forras53.
___________________________
51 Arquivo Publico do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 373; datado de 04 de janeiro de 1873.
52Arquivo Publico do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 176; datado de 09 de novembro de 1871.
53 Alguns autores buscam abranger a definição do termo quilombo, como é o caso de João José Reis, Flávio dos
Santos Gomes e Eduardo Silva.
26
No que concerne à faixa etária dos quilombolas, na província de Sergipe Del Rey,
“apenas 17% dos fugitivos ultrapassava o limite dos quarenta, uma idade, para eles,
avançada. 21% estava entre treze e dezenove anos e a maioria absoluta, 62%, entre vinte e
29 anos 54”
. De acordo com esses dados, verificamos que a maior parte dos escravos que
fugiam, eram aqueles que constituíam mão-de-obra economicamente ativa na lavoura;
representando uma perda brusca para seus proprietários, bem como uma ajuda inestimável
para os pequenos fazendeiros que lhes davam proteção , tema que será abordado no próximo
capítulo.
Cabe agora refletirmos um pouco sobre as motivações que levaram esses escravos
a fuga e formação de quilombos nas terras sergipanas. Inúmeras podem ter sido suas
motivações, porém, uma das mais evidentes na documentação consultada referente à década
de 1870, na região da Cotinguiba, diz respeito ao excesso de trabalho e castigo.
Tomemos como exemplo o caso do escravo Vicente que ao ser perguntado sobre a
razão de sua fuga declarou: “(...) fugira por medo de castigo55” ; ou o caso do escravo
Mauricio, que por sua vez esclarece: “(...) abandonara a fazenda de seu senhor pelo fato de
ter o mesmo seu senhor surrado a mulher dele respondente, sem que ela o merecesse56”.
Temos ainda a declaração do escravo João Mulungu:
(...) Sendo ainda de pouca idade seu senhor o sobrecarregava de trabalhos
superiores as suas forças e castigando-o as vezes sem razão o fazia com rigor,
(...)deliberou-se pela terceira vez fugir por não suportar mais a maneira porque
seu senhor o tratava, já surrando-o já trazendo-lhe ao pé uma corrente e sujeitando-o
a pesados serviços como o de botar fogo na fornalha57.
As atitudes desses escravos parecem indicar aquilo que eles consideravam um
direito, uma possibilidade ou uma exorbitância inaceitável. A referência a castigos excessivos
feita pelos escravos Vicente, Mauricio e João Mulungu, provavelmente era a forma deles
demonstrarem sua percepção de que seus direitos não estavam sendo respeitados.
___________________________
54REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das letras, 1999. p. 76.
55Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 178; datado de Abril de 1872
56Arquivo Público do Estado de Sergipe - SP1 , pacotilha 705; datado de 13 de Março
57 Informações obtidas a partir da transcrição do auto de perguntas feito a Mulungu em 1876.
27
Segundo Sílvia Lara, o castigo reconhecido socialmente era o castigo justo e corretivo, que
deveria ser moderado para poder educar, corrigir; servindo para mant er a obediência do
escravo ao senhor58.
Revela-nos ainda a capacidade dos escravos de buscarem conquistar espaços de
acordo com seus interesses, demonstrando que não são apenas reflexo de representações de
“outros” sociais59. Nessa sociedade escravocrata, entre a passividade absoluta e agressividade,
tínhamos espaço para a negociação, que quando falhava abria caminho para a ruptura, para o
“não quero” dos cativos60 .
Mas retornemos então ao perfil desses quilombolas sergipanos, por ora já sabemos
que estes eram homens e mulheres, sejam escravos, livres ou forros, predominantemente
jovens. Contudo, ainda nos resta saber as cidades de onde eram oriundos, bem como quem
eram seus senhores. Questões que serão explicitadas a partir de agora.
Por motivos já expostos nosso marco espacial é a Zona da Cotinguiba, região em
que ocorreu uma proliferação de quilombos formados por escravos de diversas cidades. No
Engenho São José, por exemplo, situado em Japaratuba, havia um quilombo formado por no
mínimo vinte escravos oriundos da própria Japaratuba, de Rosário, Laranjeiras e Divina
Pastora61 .
É preciso ressaltar que os escravos fugiam dos mais diversos pontos da província,
e não somente das cidades supracitadas. Uma característica marcante dos quilombos
sergipanos, pelo menos na década que está sendo analisada, era a junção de escravos de
diferentes localidades e proprietários. O que demonstra que havia entre eles uma rede de
informação e solidariedade que ultrapassava os limites da propriedade.
________________________
58Ver LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro(1750-
1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
59CHALHOUB,Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
60REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das letras, 1999.
61 Ver.Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 176, datado de 09 de novembro de 1871.
28
Quanto aos seus senhores, a documentação nos oferece uma lista imensurável, a
titulo de exemplo recorremos ao depoimento do lavrador João Batista de Melo que disse
conhecer João Pinheiro, Doutor Antonio de Oliveira, Antonio Horta, João Gonçalves Franco
e José Nobre da Cunha62 ; todos eles conviviam com a perda de escravos, que haviam fugido e
estavam a habitar um quilombo nos termos do Engenho Limeira, em Divina Pastora.
No que diz respeito à nacionalidade desses quilombolas encontramos a união de
crioulos e africanos. É o caso de Izabel, natural da Costa d’África , Venceslau, Maurício e
José Maroim, também africanos, que encontravam-se aquilombados com diversos crioulos,
como João Mulungu, Guilherme, Francisca, Carlota, Thomasia, Luisa,Antonio , dentre
outros63 .
É necessário perceber que esses quilombos não estavam à margem da sociedade,
mas interagindo com ela através de uma complexa rede social de proteção, na qual os
quilombolas procuravam, na medida do possível, obter uma maior autonomia e controle sobre
suas vidas.
2.2 ALIANÇA ENTRE QUILOMBOLAS AFRICANOS E CRIOULOS
A relação entre escravos africanos e crioulos, foi algo constante nos quilombos
sergipanos, notadamente na Zona da Continguiba , nas últimas décadas da escravidão. Os
laços de solidariedade e identidade coletiva ultrapassavam as barreiras da nacionalidade.
Antes de serem Africanos ou Brasileiros , eram escravos tentando reinventar os significados
da liberdade. Esse estreitamento das relações entre africanos e crioulos na década de 1870,
parece estar ligado ao fato de que na época em análise a Província de Sergipe contava com um
número reduzido de africanos.
____________________________
62 João Batista de Melo, era lavrador e residia em Maruim.Revelou para as autoridades que constantemente
encontrava no caminho de Laranjeiras, Rosário, Capela e Divina Pastora vários quilombolas e citou o nome
daqueles que conhecia e seus respectivos Senhores..Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 75;
onze de Março de 1872.
63 O nome e nacionalidade desses quilombolas foram citados pelo escravo Mauricio. Arquivo Público do Estado
de Sergipe – SP1 , pacotilha 705.
29
Segundo Mott, a impossibilidade de importar negros diretamente da Costa da
África, e o próprio estilo de pequena empresa doméstica dos engenhos seriam, talvez, as duas
principais razões que explicam a alta taxa de reprodução dos escravos e consequentemente, o
predomínio de crioulos nas terras sergipanas64.
Tabela 2.2 : Composição Demográfica dos Escravos de Sergipe segundo a Nacionalidade
(1872) .
Origem Total %
Nacionais 21.228 93,8
Africanos 1.395 6,2
Total 22.623 100,0
Fonte: Luiz Mott, 1986, p.144.
Alguns estudiosos da escravidão , como é o caso de Kátia Mattoso; defende a
idéia de que as relações entre africanos e crioulos foram bastante difíceis, as tradições
culturais e a língua se tornaram barreiras entre esses escravos65. Contudo, como podemos
perceber, pelo menos no período analisado, quilombolas africanos e crioulos souberam
transpor as fronteiras que os separavam e lutaram juntos para se manterem aquilombados.
O escravo José Maroim, natural da África, testifica isso ao demonstrar o
sentimento de compromisso e de interesses recíprocos que havia entre africanos e crioulos.
Ao ser preso em 1873, após passar um tempo aquilombado, José Maroim declara para as
autoridades que “(...) sendo pego pelo Proprietário do Engenho Piedade, e este o colocando em
um tronco, João Mulungu, e outro(...) quebraram o tronco ,e o puseram em liberdade66 .”
__________________________
64 Ver em MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986,
pp. 139-150.
65 MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed. 1990,2003.
66Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 298.
30
Que motivos teria o quilombola João Mulungu para tomar essa atitude em prol de
José Maroim? Verificamos que além da questão solidária que unia esses escravos, na
mentalidade de João Mulungu, talvez, perpassasse naquele momento o desejo de não ver,
através da captura de José Maroim, a vitória do Senhor de Engenho; mais que isso, a quebra
daquele tronco( símbolo da repressão e do cativeiro) e conseqüente libertação do dito escravo,
tem forte valor simbólico, na medida em que demonstra que os escravos não são sujeitos
passivos dentro do regime escravocrata, ao contrário, a ação do quilombola João Mulungu , é
um exemplo do papel do individuo, neste caso do negro escravizado, como agente de sua
própria história.
O “favor” recebido por José Maroim foi retribuído , pois este tardou o quanto
pode para revelar os locais onde João Mulungu e seu grupo tinham rancho:
Perguntado mais se sabe aonde tem rancho de escravos fugidos? Respondeu
que ouviu dizer ter no [...] Termo de Itabaiana e disse mais que não tem
declarado os lugares de rancho deles em atenção a João Mulungu67 .
Portanto, a atitude do escravo africano José Maroim, foi de inestimável valia para
que o quilombola, crioulo, João Mulungu prosseguisse com sua fuga. Esse laço se
solidariedade recíproco foi um dos motivos da manutenção do quilombismo durante vários
anos na Província de Sergipe Del Rey.
Além de José Maroim, a documentação nos remete a uma grande quantidade de
quilombolas africanos que mantinham estreitas relações com crioulos, dentre eles, tínhamos
Izabel, Venceslau e Mauricio.
No entanto, essa rede social de proteção que se formava, não estava restrita a
aliança entre africanos e crioulos. Como poderemos constatar, havia também um estreito
relacionamento entre os escravos fugidos e libertos, independente da nacionalidade.
___________________________
67Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 298.
31
2.3 A UNIÃO DOS QUILOMBOLAS COM OS ESCRAVOS LIBERTOS
É importante insistirmos na capacidade que tinham os quilombolas de recriarem
seus espaços dentro da sociedade escravista; fato reforçado através das alianças que
celebravam, sejam com assenzalados, libertos (ex-escravos) e até mesmo com pessoas livres,
como comerciantes locais e Proprietários de engenho.
Como bem afirma Flávio dos Santos Gomes, “ através de variadas e complexas
relações, as diversas comunidades quilombolas, além de uma ampla rede de socialização,
constituíram uma verdadeira teia de proteção que as manteve também abastecidas68 .”
A aliança desencadeada entre escravos quilombolas com libertos, contribuiu para
sustentar a longa vida dos quilombos sergipanos. A Zona da Cotinguiba, no ano de 1876, nos
serve de exemplo, demonstrando a inegável importância assumida por essas alianças.
Chegando ao meu conhecimento que no lugar denominado Camaratuba, próximo
a cidade de Laranjeiras existiam alguns quilombolas, dirigi-me sem parada de
tempo para aquela cidade levando comigo o número de oito praças. Lá chegando
tive de demorar-me um pouco até que chegasse o guia(...). Por aquele soube que
os escravo eram em número de seis e que se achavam em diversas casa
pertencentes a alguns libertos ali residentes (...)69.
Acima temos o chefe de Policia expondo para o Presidente de Província a situação
com a qual se deparou no cumprimento de suas funções. A partir do exposto, verificamos que
a idéia de reificação dos escravos, defendida por alguns estudiosos70 ; ou ainda a concepção
de que “ a resistência do negro através dos quilombos foi uma resistência de fora para
dentro, no contexto da sociedade escravista71” ; não condiz com a realidade dos quilombos
__________________________
68GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades se senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.p.95.
69Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 652.
70 Suely Queiroz traça um panorama da escravidão negra no Brasil; e para essa autora o negro cativo foi o
suporte da economia brasileira por todo o período que durou a escravidão, no entanto, a violência da escravidão
havia transformado o negro em um “ser” coisificado. Ver QUEIROZ, Suely R. Reis de. Escravidão negra no
Brasil. São Paulo: Ática,1987. Série Princípios.
71SANTOS, Lourival Santana. Quilombos e quilombolas em terras de Sergipe no século XIX.Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.Aracaju:n° 31,1992.p.42.
32
sergipanos , nos quais seus componentes buscaram desenvolver uma relação simbiótica com
vários setores da população; no caso citado, com ex-escravos.
Diversas podem ter sido as razões para que esses libertos acoitassem , em suas
casas, os quilombolas: laços de parentesco, religião, amizade, interesses por trocas mercantis,
ou até mesmo uma ação solidária desinteressada ( razão pouco plausível). Contudo,
independente da razão, a proteção dos libertos a esses quilombolas representou uma ajuda de
incalculável valor, uma vez que, impossibilitou a ação das autoridades locais, pois as casas
dos libertos eram
muito próximas umas das outras, sendo portanto impossível atacá-las ao mesmo
tempo com tão pouca gente, sob pressão de trabalhar infruticuamente e nada mais
fazendo do que espantar (...). Semelhante procedimento deu lugar a que eu não
prosseguisse pois não convinha fatigar sem resultado algum os praças que já se
se achavam tão cansados72.
O apoio dado aos quilombolas pela sociedade envolvente, contribuiu para
dificultar a tarefa do governo em exterminar os quilombos . O trecho apresentado nos serve
para retificar a idéia de que na Província de Sergipe, o que ocorria por parte dos negros
fugidos tinha sido um movimento desprovido de coesão e planejamento; concepção que nos
conduz a inferir que havia uma falta de organização dos quilombolas73.
Tal teoria choca-se com as informações expostas pela documentação utilizada,
na qual notamos, por exemplo, a organização e estratégia de defesa empregada pelos
quilombolas com o auxilio dos ex-escravos. Estratégia essa que contribuiu para ineficácia das
expedições reescravizadoras.
É de capital importância enxergarmos o escravo enquanto parte ativa da
sociedade. Não podemos ignorar a atuação destes escravos como agentes históricos, que
utilizaram a criatividade e inteligência para obterem ou permanecerem em liberdade.
_________________________
72Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 652.
73 ver tal concepção em SANTOS, Maria Nely.A sociedade Libertadora “Cabana do Pai Thomaz”: Francisco
José Alvas,uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J.Andrade,1997.
33
2.4 SENZALAS: UM REFÚGIO SEGURO
Em várias ocasiões os quilombolas se refugiaram no interior das fazendas, com a
conivência e apoio dos escravos. A maioria das senzalas funcionou como um refúgio seguro
para grande parte dos escravos fugidos.
Na região da Cotinguiba, os quilombolas eram constantemente auxiliados pelos
escravos das senzalas, com os quais entretinham relações não somente de proteção, mas
comercial. Essa foi mais uma aliança que perdurou durante o desenvolvimento do
quilombismo na Província de Sergipe, corroborando para formação e sobrevivência deste
movimento. Pois, “a amizade e proteção que quase todos os escravos dos engenhos votam
aos quilombolas são sérios obstáculos:dão não só guarida no caso de qualquer
emergência,mesmo dentro das senzalas74 .”
A aliança dos quilombolas com os escravos da senzala dificultou, em diversas
ocasiões, a ação das autoridades em prol da captura dos escravos fugidos. O Jornal de
Aracaju, em agosto de 1872, expressa como essa relação burlava o êxito das diligencias
policiais:
Vão de novo aparecendo em alguns pontos os escravos fugidos.O rigor do
inverno faz-los procurar as proximidades dos povoados e a proteção dos
parceiros dos engenho, proteção que muitas vezes tem burlado as diligencias da
da policia. Ultimamente na Vila de Japaratuba fez-se uma diligencia que se não
fosse aquela proteção grande seria a presa.Pressentiram o movimento de força
e deixaram os ranchos com precipitação refugiaram-se os quilombolas nas senzalas
dos engenhos75 .
Devido à constatação desse empecilho que atrapalhava a ação das expedições
punitivas, cabia aos proprietários se esforçarem de maneira que prevenissem ou acabassem
com esse concluio.
________________________
74Jornal de Aracaju, 20 de março de 1872. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª ed.1981.
75Jornal de Aracaju, 10 de agosto de 1872. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª ed.1981.
34
É de crer que os proprietários ,os mais ameaçados com a nova atitude que vão
tomando os quilombolas, se esforcem para manter nos engenhos severa vigilância
em ordem e prevenir o perigoso concluio que hora se dá para frustrar os
planos da autoridade76 .
Os escravos das senzalas serviam muitas vezes de informantes, deixando os
quilombolas cientes de qualquer força que se aproximasse em busca desses escravos fugidos;
temos aí mais uma estratégia de sobrevivência dos quilombos.Esse foi um dos motivos
apontados pelo chefe de Policia ao Juiz Municipal de Japaratuba como causa da improdutiva
diligência que conduziu:
Hoje foi repetida a mesma diligencia com 77 praças da Guarda Nacional e os
cinco da cadeia, mas infelizmente nada se encontrou a não ser com mais
nada se encontrou a não ser com mais cinco ranchos novos em outro lugar,
tendo convicção qual que os negros são protegidos pelos do dito engenho
Coqueiro se relacionam e são avisados de qualquer força que contra eles se
dirija77.
As autoridades, freqüentemente, justificavam o fracasso das diligências devido às
relações que os escravos fugidos estabeleciam com os escravos dos engenhos. Depreende-se,
portanto, que essa complexa rede social de proteção foi vital para que os quilombolas
constituíssem, ou recriassem o seu modo de vida dentro da sociedade escravista vigente.
Os quilombolas conseguiam por meio de trocas comerciais, com os escravos das
fazendas, produtos de que necessitavam nos quilombos. A Zona da Cotinguiba foi palco de
vários intercâmbios mercantis , como publicou o Jornal de Aracaju: “a experiência tem
mostrado o grau de relação que entretêm os quilombolas com os escravos dos engenhos:
acham aqueles apoio e proteção; trocam farinha e agasalho pela partilha nos roubos dos
primeiros e em caso de perigo invadem as senzalas78”.
________________________
76Jornal de Aracaju, 10 de agosto de 1872. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo:
Brasiliense, 3ª ed.1981.
77Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 363.
78 Jornal de Aracaju, 03 de abril de 1872. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Brasiliense,
3ª ed.1981.
35
O quilombola Romão, com certa constância, praticou trocas mercantis, recebendo
do escravo assenzalado farinha em troca de carne de ovelha:
Fora preso ontem a noite no engenho Capim-assú dentro de uma das senzalas
pertencentes ao escravo Roberto do mesmo engenho Capim-assú, tendo ali ido
buscar ração de farinha da mão do dito escravo Roberto, a quem ele (Romão)
tendo por costume pedir e receber farinha em troca de carne de ovelha que ele
(Romão) muitas vezes levava79.
O grupo dirigido pelo quilombola João Mulungu, mantinha estreita relação com
os escravos do engenho São José: “a ponto de arrancarem mandioca para fazerem a farinha
que repartiam (...) igualmente repartiam[...] dos gados que furtavam os ditos fugidos pelos
Pastos dos engenhos vizinhos(...)80.”
A importância dessa aliança entre quilombolas com os escravos das senzalas, não
se resume ao aspecto econômico. Contribuiu também para o fortalecimento das relações
familiares, manutenção de praticas culturais e religiosas. A documentação nos revela casos de
quilombolas que se reuniam com os escravos das fazendas para “batucarem” e se divertirem
durante as noites. Na época do São João e do Natal, esses batuques se realizavam de forma
mais constante81. Esse era uma ocasião onde os quilombolas reviam seu parentes, amigos; era
um momento de sociabilização.
Muitos escravos que optavam pela fuga deixavam nas fazendas entes queridos,
que por motivos diversos (idade avançada, doença, impossibilidade de prosseguir fuga com
crianças pequenas, ou até mesmo a escolha de se manter como escravo na fazenda) não os
acompanhavam; no entanto, esse não era um motivo para que os laços familiares fossem
definitivamente quebrados. Foi justamente esses laços que facilitaram o cotidiano de muitos
quilombolas.
________________________
79Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 705.
80 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 176.
81cf. Arquivo Público do estado de Sergipe – pacotilha 373.
36
Essa permanente relação que os quilombolas entrelaçavam com os escravos das
fazendas cooperou para integrar , cada vez mais , suas praticas econômicas; oferecendo assim
mais uma oportunidade para que esses escravos em fuga expandissem seu espaço de
autonomia; colaborando para o desgaste paulatino do sistema escravista.
2.5 PRESENÇA FEMININA: RELAÇÃO DAS MULHERES COM OS
ESCRAVOS QUILOMBOLAS
Segundo Reis, para as mulheres a fuga era uma decisão mais difícil, uma vez
que, elas tinham maiores possibilidades para negociar, fosse via sexo e inteligência, fosse
pelas prendas ou relações afetivas. Outro motivo é que elas eram as principais responsáveis
pelos filhos82.
Contudo, o que verificamos na região da Cotinguiba foi que as mulheres, fossem
elas escravas, livres ou forras, também se fizeram presentes nessa imensa rede de
socialização, vivenciaram o cotidiano da resistência e ,por sua vez, representaram mais um
componente dinâmico inserido no “mundo da escravidão”.
A documentação da década de 1870 nos apresenta um leque variado de
informações sobre essas mulheres que se aventuraram a fazer parte dos quilombos na região
da Cotinguiba. Tínhamos mulheres escravas de 13 anos de idade até a faixa etária dos 35
anos.
__________________
82 REIS, João J. & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil Escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.pp.63-70.
37
Algumas escravas fugidas tiveram que optar entre exercer a maternidade ou
prosseguir sua luta nos quilombos. Esse foi o caso da escrava (quilombola) Luisa, que
declarou ter “um filho que mandou depositar na ponta da igreja de São Benedito em
Laranjeiras83”.
A escolha dessa Igreja para deixar seu filho, não se deu de forma aleatória. A
Igreja de São Benedito era a sede da irmandade e foi construída para a devoção da fé dos
negros e pelos próprios negros84. A escrava Luisa sabia que ali seu rebento seria acolhido; era
um local em que ela confiava.
O Jornal de Sergipe em maio de 1873 denunciou o que corriqueiramente acontecia
com os filhos das escravas quilombolas:
A prisão da escrava não deixa de ser de importância, porque veio se descobrir
que tivera ela um filho nos matos e que o viera depositar em casa de uma mulher
moradora de Laranjeiras conhecida por Maria Cabocla. O Sr.Dr. Chefe de policia
tendo conhecimento desse fato , recomendo que o delegado procedesse as
averiguações necessárias para saber se com efeito existe o menor em poder da
dita mulher, a fim de que sendo tenha ciência o dr. Juiz de órfãos, a quem
cabe proceder a respeito da forma do reg .que baixou com o decreto de 13
de novembro de 1872,por ser o menor considerado liberto. Vê-se bem que esses
quilombolas praticam toda sorte de perversidade nos lugares em que se
encontram.Roubam, fazem mil tropelias, privam-se dos seus próprios filhos quando
não lhes dão a morte, como muitas vezes terá acontecido(...)85.
O jornal não revela o porquê dessa mulher aceitar o filho da quilombola. Mas a
forma como é chamada “Maria Cabocla” já nos dá uma pista de que ela possivelmente tinha
origem mestiça, poderia ser uma forra e deveria ter algum tipo de contato com a escrava, a
ponto desta confiar seu filho aos seus cuidados.Um outro dado exposto pela documentação
diz respeito ao infanticídio, uma prática comum entre as escravas86.
_________________________
83Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 176.
84 .NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro,2006,p.60.
85Jornal de Sergipe, 14 de maio de 1873. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzalas. São Paulo: Brasiliense,
3ª ed.1981.
86 Joceneide Cunha retrata a questão da maternidade entre as escravas. Cf. SANTOS, Joceneide Cunha dos.
Entre farinhadas,procissões e famílias:a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de
Sergipe (1850-1888).Salvador, 2004.Dissertação de Mestrado – Universidade Federal da Bahia.pp.95-98.
38
É importante ressaltar que aquilo que para alguns representa uma atitude de
crueldade, para essas escravas simbolizava uma forma de sobrevivência.A repressão aos
quilombos se dava de maneira contínua; os quilombolas viviam em constante processo de
fuga, e para que fosse bem sucedida a mobilidade e agilidade era essencial. As crianças viriam
a dificultar a movimentação desses escravos, facilitando a captura dos mesmos, talvez esta
seja a razão de não termos encontrado em nenhum dos documentos consultados a presença de
crianças vivendo nos quilombos.
Algumas dessas escravas quilombolas se tornaram amásias de seus
companheiros. Anna Rita, por exemplo, escrava fugida do Engenho Tábua, quando presa em
1873, declarou-se casada, mas assumiu ter tido “relações ilícitas” com o quilombola João
Mulungu. Quando perguntada sobre os presentes que ela havia recebido de João Mulungu ,
respondeu que “deu-lhe a quantia de cinco mil reis” 87 .
A atitude do escravo João Mulungu, gerou conflitos entre Anna Rita e a escrava
fugida Vicência , que também era amasia do mesmo.
perguntada se sabe que a escrava de nome Anna Rita do Engenho Tábua
tinha relações ilícitas com João Mulungu , e qual a razão dela (Vicência) ir
trocar palavras injuriadas com a referida escrava. Respondeu que é verdade
que é verdade ter aquela escrava relações com o escravo João Mulungu(...)
e quando João deu a quantia de cinco mil reis a ela( Vicência)como já tendo
recebido presentes de João, formalizou-se com aquela dádiva, motivo que
foi tomar satisfação com a tal Anna Rita(...)88.
Além das amásias Anna Rita e Vicência, o escravo citado tinha uma companheira,
“uma preta de 13 anos89” . Temos uma teia de relações afetivas e conflituosas, comum entre
os quilombolas sergipanos.
Mas, a relação afetiva dos quilombolas não se dava apenas com mulheres
escravas. Maria, mulher forra, “era amásia do fugido Mathias .” Maria vivia de costuras,
tinha 25 anos e não fazia parte de quilombos, apenas tinha comunicação com os escravos
_______________________
87/88 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 373.
89 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 564.
39
fugidos, e também foi presenteada com cinco mil réis pelo escravo Mathias. No dia de Natal,
Maria havia ido batucar com os quilombolas Anna Rita, Marcolino, Nabuco, João Mulungu,
Maximiano, além de Mathias; e “com eles divertiu-se toda noite90”.
A vida desses homens e mulheres não se resumia a fugas, tinha-se espaço para o
lazer ; pois “a vida concreta dos escravo era algo como um jogo de capoeira – luta, música e
dança a um só tempo. Quilombolas que reinvidicam a liberdade para ‘brincar, folgar e
cantar’; religiões de santos guerreiros e santos de paz91” .
1.6 A REDE DE SOCIALIZAÇÃO
Para desespero de muitos, a rede de socialização estava formada. Os quilombolas
mantiveram relações estreitas com diversos grupos sociais, integrando profundamente a
sociedade escravista. Ao longo da década de 1870, os quilombolas existentes na região da
Cotinguiba estabeleceram redes de comércio, relações de trabalho, de amizade, parentesco e
proteção envolvendo escravos,libertos, e até mesmo gente livre branca, como alguns os
proprietários de engenhos.
Essa complexa trama de relações Flávio Gomes chamou de “campo negro”, um
espaço social, econômico e geográfico através do qual circulavam os quilombolas e a
sociedade envolvente92.
________________________
90 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 373.
91REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das letras, 1999. p.11.
92Ver GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades se senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
40
A partir do exposto, pudemos constatar que, na sua maioria, os quilombos não
existiam isolados, distantes da sociedade escravista. É claro que houve casos de quilombos
isolados, mas as fontes documentais indicam uma relação intensa entre quilombolas e outros
grupos sociais. Cada vez mais evidente, a diversidade na formação desses grupos torna
imprescindível uma ampliação da definição de quilombo.
Para alguns senhores, a existência de grupos de quilombolas representava uma
ameaça a sua autoridade e ao controle de suas fazendas; para outros, eram aceitos como
componentes indispensáveis, pois a mão de obra quilombola foi responsável por dinamizar a
economia dos pequenos proprietários na Zona da Cotinguiba.
A interação do mundo quilombola com a sociedade envolvente modificou lenta,
porém profundamente os contornos da sociedade em que viviam.
CAPÍTULO III
SENHORES E QUILOMBOLAS: HISTÓRIAS DE CONFLITOS E
BARGANHAS NA ZONA DA COTINGUIBA
3.1 JOGO DE INTERESSES: FAZENDEIROS E QUILOMBOLAS ABREM
ESPAÇO PARA BARGANHAS
Na Província de Sergipe havia o predomínio de pequenos engenhos, bem como
uma posse reduzida de escravos; possivelmente, “na segunda metade do século XIX o
engenho médio sergipano empregava em torno de 20 escravos, sendo poucos os grandes
engenhos93”.
Tabela 3.1: Sergipe – Diversos Municípios : Plantel Médio de Escravos por Engenho
Município/Ano 1857/58 1875/16 1881/82
Laranjeiras 32,0 17,2 20,0
Divina Pastora 24,0 n.d. 26,0
Maruim 27,0 n.d. 37,3
Japaratuba n.d. 23,0 24,6
Rosário n.d. 26,9 31,0
Capela n.d. 18,3 21,7
Itaporanga 28,0 n.d. 43,7
Espírito Santo 14,0 n.d. 7,8
Estância 18,0 n.d. 31,0
Lagarto 19,0 n.d. 18,9
Simão Dias 17,0 n.d. 37,9
Vila Nova 24,0 n.d. 12,5
Própria 13,0 20,5 23,3
Sergipe [21,13] [19,20] [21,66]
Fonte: Passos Subrinho, 2000, p.98.
_______________________
93PASSOS SUBRINHO, Josué M. Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no Nordeste
açucareiro (1850-1888). Aracaju: FUNCAJU, 2000, p.95.
42
Segundo afirma Mott, aproximadamente 1/3 dos cativos constituíam mão-de-obra
inata para lavoura, pois era composta de crianças pequenas, idosos e portadores de doenças
crônicas94 .
Foi no decorrer da segunda metade do século XIX que a porcentagem de cativos
decresceu na Província de Sergipe; tal redução do plantel médio de escravos por engenho em
Sergipe se deu em virtude de uma confluência de fatores, como: a continuidade da expansão
no número de engenhos na província, sendo que a população escrava não crescera no mesmo
ritmo; o fim do tráfico negreiro; a venda de escravos do Nordeste para as fazendas de café do
sul; a ocorrência de algumas epidemias, em especial a de Cólera-Morbus ; e tal redução é
conseqüência também das diversas leis posteriores a 185095 .
O inventário de João Pinheiro de Mendonça, proprietário do engenho “Mulungu”,
situado no Termo de Laranjeiras , nos serve de exemplo para testificar o número reduzido de
cativos, nos engenhos sergipanos. Esse Senhor de engenho detinha em sua propriedade 23
escravos. Sendo 10 homens, em idade que variava de 16 a 55 anos; 7 mulheres, que possuíam
entre 17 e 40 anos; e 6 crianças, com idade entre 8 meses e 10 anos96
.
Esses dados ratificam as especificidades dos engenhos sergipanos, mais
precisamente da região da Cotinguiba, no que diz respeito ao número de escravos em idade
economicamente ativa para lavoura; no engenho supracitado temos em torno de 15 cativos em
idade ativa, sendo que, segundo consta nas documentações referentes à segurança pública,
pelo menos 4 destes encontrava-se aquilombados na década de 1870; são eles: Romana, João
Mulungu, Maximiano e Luzia .
É notório , portanto, que para os Senhores de engenho a mão de obra de seus
escravos constituíam uma fonte valorosa na lavoura canavieira. Todavia, os fazendeiros se
comportaram de maneiras diferenciadas diante da fuga e formação de quilombos.
_______________________
94Ver em MOTT, Luiz R. B. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: FUNDESC, 1986.
95PASSOS SUBRINHO, Josué M, op.cit., p.99.
96 Arquivo do Judiciário do Estado de Sergipe,caixa 01-A.
43
Alguns proprietários de engenho davam couto, ou não reprimiam diretamente os
quilombolas, em troca de não sofrerem ataques a suas fazendas, como também , devido o
pequeno plantel de escravos que possuíam, os quilombolas serviriam de mão de obra para
lavoura; surgindo assim o espaço para negociações entre pequenos proprietários e
quilombolas.Esse foi caso, por exemplo, do Senhor Francisco Tavares de Sá e João Maria
d’Araujo Nabuco.
Poderemos notar que o envolvimento dos fazendeiros no acoitamento de
quilombolas, não se deu por uma solidariedade desinteressada, os agentes históricos
envolvidos nessa rede de socialização tinham lógicas próprias, e entrecruzavam interesses e
solidariedade.
Notamos esse jogo de interesses entre o proprietário do Engenho São José,
Francisco Tavares de Sá, com alguns quilombolas. O delegado de polícia de Japaratuba, em
1871 relata:
chegando ao engenho São José, ordenei o cerco das senzalas, e aparecendo logo
o proprietário dito Tavares, armado de revolver dentro das botas, este opôs-se
formalmente ao cerco,gritando em altas vozes, que fossem cercadas as suas
senzalas.97
Durante a década de 1870, o engenho São José representou um ponto de refúgio e
proteção para os quilombolas do grupo de João Mulungu. É possível inferir que Francisco
Tavares de Sá, era um pequeno proprietário de engenho, possuidor de um plantel reduzido de
escravos. Isso justificaria sua atitude ,ao desafiar as autoridades locais, em defesa dos
escravos fugidos que encontravam-se acoitados em sua fazenda.Esses quilombolas juntamente
com os cativos do engenho, possibilitaria a Tavares um maior dinamismo para sua lavoura.
João José Reis demonstra que no quilombo do Oitizeiro, situado na Bahia , no ano
de 1806, os lavradores de mandioca acoitavam os quilombolas para poderem utilizá-los como
mão-de-obra98.
________________________
97Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 301.
98Ver REIS, João José.Escravos e coiteiros no quilombo do oitizeiro: Bahia, 1806. IN: Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos: Companhia das
Letras,1996,pp.332-372.
44
Ao continuar o relato da situação com a qual se deparou, o delegado de Polícia
corrobora com a tese de que Tavares era detentor de um reduzido número de escravos
A despeito da oposição do dito proprietário, fiz cercar e correr as senzalas,
onde estavam cerca de dezesseis escravos, que não foram conhecidos pela
força e que o dito proprietário disse serem seus, e querendo eu proceder ao
interrogatório desses, o dito proprietário se opôs; dizendo que eles nada
responderiam .Alguns dias depois da diligencia , fui informado que alguns dos
escravos que estavam nas senzalas eram quilombos que ali estavam
guardados, sob a proteção do proprietário.99
Tavares possuía em torno de dez escravos cativos, pois, segundo o quilombola
José boi, o quilombo do engenho São José contava com cerca de seis escravos fugidos100 .
Como então garantir uma boa produção sendo possuidor de um pequeno número de escravos?
Uma solução para este Senhor de Engenho, talvez, estivesse naquilo que muitos abominavam:
os quilombolas.
Em uma época de desagregação do sistema escravista, e relativa estagnação da
economia açucareira do Nordeste, o trabalho servil dos escravos em fuga surge como
alternativa , uma vez que, segundo Josué M. dos Passos Subrinho, o trabalho livre nos
engenhos sergipanos, alem de minoritário era utilizado predominantemente de forma
suplementar101 .
Portanto, além do medo de represálias que poderiam sofrer por parte de
quilombolas, já que estes costumavam praticar assaltos a transeuntes e fazendas; existia um
fator gritante para que os pequenos proprietários se inserissem nessa rede de proteção: o fator
econômico.
Como podemos constatar, Francisco Tavares de Sá, não foi uma exceção dentro
do sistema escravista; os quilombolas sergipanos puderam contar com outros senhores, com
os quais estabeleceram espaços de autonomia, solidariedade e mais que isso, de interesses
recíprocos.
__________________________
99/100/ Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 301.
101 Ver PASSOS SUBRINHO, Josué M, op.cit,pp.75-102.
45
O delegado de Japaratuba mostrou-se indignado ao verificar que havia alguns
ranchos de quilombos, bem próximos ao oitão das senzalas do engenho São José, que no
momento do cerco encontravam-se vazios, mas que haviam sido habitados pelos quilombolas,
pois neles foram encontrados cordas, ferros, gamelas, salgadeiras, gordura de carne, couro de
boi, e outros sinais.
É presumível que Tavares tinha total ciência da existência desse quilombo nas
imediações de sua fazenda, e provavelmente, foi o responsável pelo êxito da fuga dos
quilombolas, pois quando o delegado chegou a sua fazenda, imediatamente Tavares mandou
um de seus escravos “a pressa montado a cavalo para o pasto de fora, sem lhe ordenar coisa
alguma senão que fosse ao pasto de fora102” .Tudo indica que para o escravo já estava
subentendido que deveria avisar aos quilombolas o que estava ocorrendo em tempo hábil para
que estes fugissem.
O engenho Limeira, no Termo de Divina Pastora, cujo proprietário era o
Comandante Superior João Maria d’Araujo Nabuco, é mais um exemplo das relações travadas
entre senhores e quilombolas.
Segundo as autoridades locais nesse engenho “se achavam grande quantidade de
ranchos, parecia como que uma povoação103”. Sendo que, o grande número de escravos
fugidos estava sobre a ordenação de João Mulungu.
O alferes João Batista da Rocha, em janeiro de 1873 expõe:
Estes quilombolas acham-se acoitados na matas do Engenho Limeira com
pleno conhecimento e consentimento do respectivo proprietário, Coronel
João Maria d’Araujo Nabuco, o qual frustra grande parte das diligências
que faça104.
___________________________
102Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 301.
103Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 178.
104 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 298.
46
Novamente temos um Senhor de Engenho desafiando as autoridades policias; a
partir do trecho citado percebemos a grande importância desse “laço de solidariedade”, que
contribuía para frustrar as diligências reescravizadoras. Um fato interessante que ocorreu no
engenho Limeira, foi que alem da conivência do coronel, proprietário do engenho, havia
também o apoio do juiz Municipal de divina Pastora.
O senhor doutor Juiz Municipal do Termo tem sido de grande obstáculo a
realização dos planos policia contra os quilombolas (...) .Quando tive de
fazer uma importante diligência no Engenho Limeira e que os praças ainda
não estavam aqui para não haver suspeitas, o único homem que soube do segredo
foi o senhor doutor Juiz Municipal e quando lá cheguei os quilombolas tinham a
pouco tempo mudado de couto (...). Quando a pouco dias tive de fazer uma nova
diligência e que por felicidade encontrei alguns quilombolas tendo um
deles resistido armado a voz de prisão, o soldado cumpriu seu dever e
atirou sobre ele tiro que o matou. Entretanto, este procedimento desagradou
ao Dr. Juiz Municipal por ter sido feita a prisão nas matas anexas ao
Engenho Limeira, e tem declarado publicamente que vai processar a mim e ao
soldado por crime de homicídio105.
Quais as motivações para que o Juiz Municipal acobertasse os quilombolas do
engenho Limeira? A atitude desse juiz parece estar ligada a “laços de amizade” que mantinha
com o proprietário do citado engenho, chegando a declarar que “qualquer ato que diga
respeito à família do coronel João Maria d’Araujo Nabuco são como se fossem a sua própria
pessoa106”.
A reação do Juiz Municipal não estava, portanto, atrelada à defesa de
quilombolas, pois se assim fosse, reagiria com o mesmo vigor quando as forças policiais
atuavam sobre outros engenhos do Termo de Divina Pastora, fato que não ocorreu. A
documentação nos revela que a indignação de tal juiz despertava-se apenas quando estava em
jogo os interesses do Comandante Superior João Maria d’Araujo Nabuco.
Segundo divulgou o Jornal de Sergipe, em março de 1873, alguns proprietários
acoitavam escravos em suas fazendas em virtude de um “desleixo criminoso107”. Contudo, o
_______________________
105/106 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 298.
107Jornal de Sergipe, 19 de março de 1873. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzalas. São Paulo:
Brasiliense, 3ª ed.1981.
47
alferes João Batista deixou claro, a partir do exposto, que as atitudes desses fazendeiros, em
momento algum se trataram de um simples desleixo; ao contrário, foram ações conscientes e
com objetivos pré-determinados.
Objetivos esses, que não se tratavam de uma pura solidariedade, mas sim de um
jogo de interesses mútuo; no qual tanto senhores quanto quilombolas souberam administrar
através de negociações e barganhas.
Para os senhores, como já foi dito, os quilombolas poderiam representar uma
força a mais para a lavoura canavieira. Mas, quais as vantagens adquiridas por esses escravos
nessa relação?
Tudo indica a existência de acordos entre fazendeiros e aquilombados; acordos
que poderiam variar desde refúgio, proteção e alimentos para o seu cotidiano; além do que
esses escravos em fuga ganhavam com essa relação à possibilidade de prolongar seus dias de
busca pela liberdade, ou ainda a oportunidade de trocar de senhor.
Poder-se-ia imaginar que esses quilombolas ao fugirem de seus senhores e
permanecerem acoitados em outras fazendas com a cumplicidade dos proprietários , estariam
nada mais do que uma troca de senhores. Porém, tal visão recai em extremo reducionismo.
Alguns quilombolas, certamente tinham como objetivo trocar de senhor, mas esta
não foi uma regra. Vários escravos quilombolas perceberam diante dessa situação a
possibilidade de criar ou modificar espaços de autonomia. Esses sujeitos históricos não
estavam sendo obrigados a estar ali e a trabalhar; essa foi uma opção feia por eles,
demonstrando assim que em momento algum se tornaram seres reificados, mas sim homens e
mulheres possuidores de vontades.
É necessário ressaltar que, senhores e quilombolas nem sempre estiveram
dispostos a acordos e relações amistosas. Histórias de conflitos e perseguições também
permearam a Zona da Cotinguiba no decorrer da década de 1870.
48
3.2 QUILOMBOLAS E FAZENDEIROS TRAVAM CONFLITOS
Ao lado dos fazendeiros que aceitavam a existência dos quilombolas, havia uma
parte da classe senhorial, para a qual os quilombolas constituíam um péssimo exemplo para os
escravos. Não foi incomum esses senhores prestarem queixas junto as autoridades locais , na
tentativa de acabarem com os quilombos na Província de Sergipe.
A fuga e formação de quilombos por parte de alguns escravos, possivelmente
gerou o temor de vários senhores a impressão de que a dita “criminalidade” escrava tendia a
aumentar, tornando-se um perigo concreto ao controle de suas fazendas.
Muitos fazendeiros não aceitavam a perda de seus escravos, em pleno vigor físico,
e lutaram o quanto foi possível para recuperar a mão de obra desses cativos, uma vez que a
década de 1870 corresponde a um período de declínio da mão de obra escrava, em
decorrência de fatores supracitados. A fuga de escravos representava , portanto, um enorme
prejuízo para classe senhorial.
A economia dos escravos aquilombados na Região da Cotinguiba tinha como
característica o seu aspecto predatório, ou seja, vários quilombolas sobreviviam da prática de
roubos , muitas vezes praticados em fazendas. Portanto, além da perda do valor gasto na
aquisição dos escravos; do déficit na produção, em virtude da redução da mão de obra; os
fazendeiros ainda viviam sob a constante ameaça de terem a qualquer momento suas
propriedades atacadas.
O Jornal de Aracaju, no ano de 1874, expõe o comunicado do Presidente da
Província, Antônio dos Passos Miranda:
Ainda não se pode extinguir os quilombos que, de longa data , são o terror
de grande número de proprietários, cuja fortuna e vida sofrem constante
ameaça pelas escoltas que de vez em quando dão os escravos em
diferentes termos108.
__________________________
108Jornal de Aracaju, 15 de março de 1874. Apud MOURA,Clóvis. Rebeliões da Senzalas. São Paulo:
Brasiliense, 3ª ed.1981.
49
A tranqüilidade dos proprietários dependia, em certa medida, da captura dos
quilombolas e conseqüente destruição dos quilombos. Esses escravos em fuga, que para
alguns senhores representavam simples mercadorias, na realidade eram antes de tudo sujeitos
lutando pela sobrevivência fora do cativeiro. Nessa luta cotidiana a vida de senhores poderia
estar em jogo, pois se de um lado havia fazendeiros que exigiam a recaptura de seus cativos,
do outro se tinha escravos que não poupariam esforços para continuarem aquilombados.
Acompanhemos a ação de alguns quilombolas, relatada por Luis Barbosa
Madureira Mainarte, em uma queixa crime contra os quilombolas João Mulungu, Quirino,
Manoel, Malaquias, Cassiano, Pedro e Manuel.
Achando-se o suplicante em viagem de Maroim para sua casa, que é em
terras do engenho Matta, em caminho foi atacado pelos ditos
escravos e outros quilombolas , os quais o fizeram apoiar com ameaças
de morte por estarem todos bem armados de bacarmates ,facas de ponta
e outros instrumentos mortíferos, e o acompanharam a pé a sua residência 109.
Como podemos verificar os quilombolas agiam a partir de premissas próprias,
fazendo uso daquilo que estava ao seu alcance para adquirirem o que desejavam. A
intimidação a senhores fazia parte desse ambiente de conflitos e negociações.
Ao chegar a sua residência,
O suplicante encontrou um hospede e outras pessoas que estavam em
companhia de sua ama Felismina Maria do Sacramento, e os ditos escravos
penetraram violentamente sua morada e a puseram em cerco, carregando
galinhas, perus, carneiros, sela seus pertences e, depois de o injuriarem bastante
com palavras afrontosas, o deixaram felizmente sem ofensas físicas110
.
Os quilombolas, em geral, não figuravam como ameaça efetiva a escravidão, mas
sem dúvida representaram uma importante ameaça simbólica e um imenso problema para a
_______________________.
109 Arquivo do Judiciário do Estado de Sergipe,caixa 01/884.
110 Arquivo do Judiciário do Estado de Sergipe,caixa 01/884.
50
mão-de-obra, pois o trabalho escravo constituiu a base fundamental do sistema de produção
na região da Cotinguiba.
Como já foi exposto anteriormente os escravos que fugiam, em sua maioria, eram
aqueles em idade economicamente ativa para lavoura canavieira; o preço dess4es escravos
sempre estiveram ligados a diversos fatores como sexo, idade, nacionalidade, aptidão para o
trabalho etc. Sendo assim, os escravos entre 15 e 35 anos, estando no auge da fase mais
produtiva de suas vidas, eram os mais valorizados111.
A fuga de quatro escravos do proprietário João Pinheiro de Mendonça , dono do
Engenho Mulungu, representou para este uma perda de 2:800$000112, e um déficit na sua
produção, uma vez que João Pinheiro passou a contar com apenas onze escravos na sua
propriedade.É notória , portanto, a importância dos cativos para os senhores de engenho,
sendo a sua evasão uma perda brusca para economia escravista.
Sem dúvida, se não desempenhassem um papel de grande relevância na
sociedade escravista, senhores de engenho e autoridades locais não teriam, de forma
contundente, se empenhado na destruição dos quilombos.
Se de um lado os fazendeiros procuravam em diversos momentos reelaborar
políticas de domínio, visando o controle da população escrava, isto não
aconteceu sem a participação e, mais, a interferência dos cativos .Entre
medos, retaliações, barganhas, repressões etc.; senhores e escravos em variadas
ocasiões modificaram lenta, porém profundamente, os contornos do mundo em
que viveram113 .
______________________
111 Sobre o preço dos escravos Ver: SANTOS, Patrícia Lima Moraes. Permanências e transformações da
riqueza em uma sociedade escravista: Maruim (1850-1888).São Cristóvão, 2002. Monografia (graduação em
história) UFS/CECH/DHI.
112 Os escravos fugidos foram Romana, João Mulungu e Maximiano, que estavam avaliados em 800$000 cada ,
tinham entre 16 e 25 anos e eram crioulos; a outra escrava fugida chamava-se Luzia, era uma africana de 40
anos e estava avaliada em 400$000.
113GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades se senzalas no Rio de
Janeiro- século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995,p.294.
51
Através de conflitos ou relações amistosas, os quilombolas buscaram sobreviver
nas fronteiras do mundo escravista , dando novos contornos ao sistema em que se
encontravam inseridos.
3.3 REPRESSÃO: O APARATO MILITAR ENTRA EM CENA
A existência de fugas de escravos foi reconhecida desde sempre pelos senhores
que, visando combatê-las tomaram suas medidas, cada um buscando cuidar de si e dos seus.
Quando esses fugitivos se ajuntavam, e passavam a ser vistos como uma ameaça, os grupos
de repressão entravam em cena.
Para o governo da Província de Sergipe, a tarefa de pôr em prática a política de
repressão não foi uma tarefa fácil. Apesar das autoridades locais não hesitarem na tentativa
de reprimir a formação de quilombos; os esforços empregados não chegaram a alcançar o
êxito desejável. Em meio às tentativas frustradas de se montar um aparelho militar eficiente
na Província, os quilombos continuaram a se proliferarem na região da Cotinguiba.
Pagamento de gratificações, utilização de espias, reforço no número de praças,
ajuda da Guarda Nacional; vários foram os meios utilizados pelas autoridades buscando
incrementar as ações das forças policias. Todavia, tais ações esbarravam na rede social de
proteção que dificultava o trabalho das tropas reescravizadoras.
Os resultados ínfimos das diligências não se devem apenas ao apoio que os
quilombolas recebiam de vários setores da sociedade envolvente; deve-se levar em conta
também o caráter incipiente das forças militares que atuavam na Província.
Para efetivar a prisão do escravo João Mulungu,um dos mais procurados pelas
autoridades locais; o chefe de policia remeteu ao Presidente de Província , no ano de 1873,
um pedido para aumentar o número de praças para ajudar na captura de tal quilombola114 ,
pois o efetivo militar era bastante inaudível .
___________________________
114Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 564.
52
O tenente João Batista da Rocha , em setembro de 1873, descreve para o
Presidente da Província o resultado da diligencia conduzida por ele , cujo objetivo era
justamente a captura do escravo João Mulungu e outros quilombolas:
Partindo desta capital com 5 praças, reunido a estes mais 6 do destacamento do
Rosário,(...). Em caminho encontraram um encontraram um escravo, que
confessando achava-se fugido há muitos dias(...). Em seguida se lhe apresentou
um outro encarregado pelo tenente Coronel João de Siqueira Maciel de
guiá-lo até os ranchos dos quilombolas. Dirigindo-se aos lugares (...) encontrou
15 ranchos com 14 escravos115 .
O número de praças envolvidos nessa operação, como se pode perceber, foi
bastante reduzido; a falta de praças suficientes emergia como mais uma dificuldade no
combate aos quilombos sergipanos.
A Zona da Cotinguiba, devido elevado número de escravos que ali habitavam,
necessitava de um maior rigor das autoridades para combater possíveis “desordens” , no
entanto as forças policiais se mostraram escassas. O que pensarmos então da ação militar nas
demais regiões da Província? Parece coerente inferirmos que nas outras regiões o aparato
militar também tenha deixado de operar com a eficácia necessária, pois se na Cotinguiba,
região mais importante na produção açucareira da Província, se tinha um número precário de
praças, nas demais regiões esse número deve ter sido ainda menor.
Na diligência comandada por João Batista da Rocha, considerado o maior
caçador de quilombolas na Província de Sergipe, notamos que ele contou com a ajuda de um
escravo para guiá-lo até o local desejado. A utilização de guias foi algo corriqueiro, em
diversas ocasiões foram eles os responsáveis por indicar os pontos onde existiam quilombos,
bem como direcionar as tropas em meio às matas.
Vários guias tratavam-se de escravos que fizeram parte dos quilombos , e por este
motivo conheciam bem as regiões onde os escravos em fuga costumavam se aquilombar.
Contudo, nem a ajuda dos guias tornava as diligencias mais fecunda.
__________________________
115Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 564.
53
Apesar dos esforços empregados pode somente capturar 4, inclusive uma
preta de 13 anos, mais ou menos, que vivia em companhia de João Mulungu.
Foram apreendidos nos ranchos dois cavalos, uma pistola, algumas facas
e outros objetos116 .
O principal objetivo dessa diligência era capturar o quilombola João Mulungu,
tido pelas autoridades como o chefe mais terrível dos escravos fugidos. No entanto, tal
objetivo não foi concluído; João Mulungu e parte de seu grupo permaneceu em fuga por mais
alguns anos. O tenente João Batista da Rocha justificou da seguinte forma o êxito da fuga do
quilombola Mulungu:
Como vê Vossa Excelência não pode ser capturado o escravo João Mulungu,
e todos os outros que o acompanharam por motivos supremos (...),como
fosse o pouco número de praças e a circunstância de serem os ranchos todos
de palha, e que muito facilitou a fugidos escravos117
.
Segundo Flávio dos Santos Gomes, no período escravocrata ocorreu à
coexistência de diversos tipos de quilombos: aqueles que procuravam constituir comunidades
independentes com atividades camponesas integradas a economia local, essas comunidades
quilombolas possuíam uma economia estável e além dos produtos cultivados para sua
subsistência produzia excedentes, os quais negociavam e mantinham trocas mercantis com
vendeiros locais; havia os quilombos que se caracterizavam pelo protesto reivindicatório dos
escravos para com seus Senhores, esses escravos eram na maioria das vezes pertencentes a
uma mesma localidade e procuravam manterem-se aquilombados no interior das terras do
próprio Senhor; e existia ainda os quilombos que se dedicavam a razias, e não possuíam
acampamentos fixos118 .
___________________________
116/117 Arquivo Público do Estado de Sergipe – SP1 , pacotilha 564.
118 cf. GOMES,Flávio dos Santos. Nos mundos da escravidão: escravos, camponeses e quilombolas no Rio de
Janeiro do século XIX. Caderno UFS de história. São Cristóvão. UFS/DHI/PDPH/EDUFS. 1996, N° 02.
54
Foi esse ultimo tipo de quilombo que predomínio na Província de Sergipe,
tínhamos grupos formados por um pequeno número de quilombolas, que habitavam em
ranchos de palha, pois viviam em constante mudança de localidade e esse tipo de rancho
cooperava para uma maior rapidez nas fugas.
A agilidade dos escravos e as estratégias de sobrevivência montadas, vieram a
contribuir para longevidade dos quilombos, e para frustração de uma grande quantidade de
expedições repressivas. Esperteza. audácia, proteção e o fator sorte não faltaram aos
quilombolas da Região da Cotinguiba; as tropas tiveram que trabalhar exaustivamente para
conseguir obter algum resultado.
João Mulungu, por exemplo, após anos de busca, só foi capturado em janeiro de
1876, em uma ação das tropas que perdurou por alguns dias. Acompanhemos esse processo de
captura comandada por João Batista da Rocha
Marchando desta cidade no dia 14 do corrente com 10 praças sob meu
comando, dirigi-me a Vila de Divina Pastora , com o distinto Doutor Juiz
Municipal, Manoel Cardoso Oliveira de Melo, o alferes Marcolino de Souza
Franco e oito praças marchamos na noite do dia 15 com direção as matas do
engenho Maria Teles, Termo da cidade de Maroim, nada encontrando119.
No dia 17 a tropa já estava no engenho Capim-assú, situado no Termo de Rosário;
até então a expedição não havia conseguido capturar nenhum quilombola. Ao chegarem ao
citado engenho foram recepcionados por mais de 28 escravos de forma inesperada. Alguns
soldados chegaram a ser agredidos, pois os escravos “armados de facas, enxadas e facões
estavam indignados pela perseguição de seus parceiros120”. Possivelmente, essas “armas”( facas,
enxadas e facões) eram os instrumentos de trabalho que esses escravos utilizavam na lavoura;
contudo, havia também escravos que se muniam de armas de fogo, ao que tudo indica
adquiridas através de trocas mercantis ou por meio de furtos.
___________________________
119/120Arquivo Público do Estado de Sergipe – CM3 , pacotilha 39.
55
No dia 18 a tropa regressou para Divina Pastora, onde João Batista da Rocha teve
a felicidade de receber notícias fidedignas do paradeiro do escravo quilombola João
Mulungu.
Quando chegamos ao Engenho Vassouras vinha a nossa procura o escravo
Severino, do proprietário do Engenho Flôr da Roda, Termo da cidade de
Laranjeiras, e entregando-me uma carta, vi que se achava em uma das senzalas
do mesmo Engenho o chefe dos quilombolas João Mulungu121.
A tropa chega ao local denunciado na madrugada do dia seguinte, mas tem a
decepção de não encontrar o escravo João Mulungu. No entanto, o escravo Severino afirmou
que o quilombola procurado estava fora, mas a qualquer momento retornaria. João Batista e
sua tropa resolveram, então ,se refugiar no centro de um bananal a espera do momento certo
para capturá-lo; “As 11 horas e meia do dia chegou o Severino e deu parte que, João Mulungu se
achava em descanso com o seu inseparável companheiro no centro de um grande canavial
debaixo de uma árvore122.
Sem perda de tempo, a tropa marchou ao encontro do quilombola com a seguinte
tática para capturá-lo: seis guardas franqueariam pela esquerda, nove pela retaguarda e João
Batista com três praças a cavalo atacariam pela frente. O plano estava armado, mas a captura
não seria tão fácil quanto estava se configurando.
Logo que dois quilombolas sentiram a primeira opressão, um entregou-se
e o João desligou-se das mãos de três soldados e evadiu-se a toda carreira
deixando as armas compostas de uma pistola de alcance carregada e um facão
grande de ponta; não perdi tempo em persegui-lo com os praças montados
que a distância de duzentos passos mais ou menos foi arrojado ao chão com
um pequeno golpe na cabeça123
_________________________
121/122/123 Arquivo Público do Estado de Sergipe – CM3 , pacotilha 39.
56
Através do exposto, nota-se a preocupação das autoridades locais em destruir os
quilombos, pois se de um lado tornaram-se aceitos por muitos grupos da sociedade escravista
na Zona da Cotinguiba, ao mesmo tempo eram vistos como ameaças e, portanto, perseguidos
por grupos dominantes.
Isso corrobora com a tese de que os quilombolas tiveram um papel importante
para crise do sistema escravista. A luta desses escravos contribuiu para o desgaste social,
econômico e psicológico de senhores e demais autoridades124.
.
__________________________
124 Ver MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. São Paulo: Brasiliense,1981.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do quilombola João Mulungu e seus companheiros , percebemos como os
cativos reinventaram cotidianamente os significados da liberdade a partir de estratégias e
concepções próprias. Flávio Gomes pontua que em meio a conflitos e alianças, os
quilombolas abriram importantes caminhos para conquistar espaços de autonomia no interior
da própria escravidão125.E em Sergipe não foi diferente, os escravos e escravas também
conquistaram os mencionados espaços.
Ao poucos esses quilombolas foram construindo a liberdade. Liberdade essa ,
que como pudemos contatar, pode ter representado para esses escravos a esperança de
autonomia de movimento, de maior segurança na constituição de relações afetivas; a
possibilidade de escolher a quem servir ou de escolher não servir ninguém126 .
Mulungu, por exemplo, não tinha por objetivo simplesmente deixar de ser
escravo, abandonar o trabalho cativo; esse escravo a princípio queria o direito de escolher a
quem servir, como isso lhe foi negado optou por se tornar um quilombola, mas ainda
enquanto quilombola continuou, muitas vezes, trabalhando como lavrador para outros
proprietários de engenho.
A meta desse trabalho foi a de demonstrar a partir da vida de João Mulungu as
experiências dos quilombolas da região da Cotinguiba, na década de 1870; como esses
homens e mulheres vivenciaram o cotidiano de resistência, enfrentamentos e alianças.
________________________
125 cf. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades se senzalas no Rio de
Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
126CHALHOUB,Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.São
Paulo: Companhia das letras, 1990.
58
Percebemos que esses quilombolas eram homens e mulheres (crioulos e
africanos), notadamente jovens, entre vinte e vinte nove anos, oriundos dos mais diversos
pontos da Província e que contavam com a colaboração de ex-escravos, comerciantes, ciganos
ou até mesmo Senhores de Engenhos. As alianças celebradas com a sociedade envolvente
contribuíram para dificultar a ação das forças policiais e prolongar a existência dos
quilombos. Notamos, portanto, que grande parte desses quilombos não era redutos de negros
isolados da sociedade escravista.
Buscamos, sem pretensão de ter esgotado o tema, explicitar a reconstrução de
espaços de lutas cotidianas e as relações sociais forjadas pelos quilombolas. O trabalho
historiográfico se faz a partir de escolhas, e a nossa foi o quilombola João Mulungu.
Nosso objetivo não foi heroicizar a figura Mulungu, mas sim recuperar aspectos
da experiência de um escravo considerado “o mais forte elemento de resistência127” na
Província de Sergipe.
Tentamos ainda demonstrar que as especificidades dos quilombos sergipanos,
dentre elas seu tamanho reduzido, bem como seu caráter predatório não diminuem sua
importância dentro do sistema escravista vigente. Os quilombolas poderiam não ter como
objetivo acabar com a escravidão, mas é indubitável que sua busca pela liberdade se tornou
um importante foco de resistência.
Por fim, esperamos ter contribuído para uma reflexão sobre esses homens e
mulheres quilombolas, muitas vezes esquecidos pela História.
__________________________
127 cf. Relatório do Presidente da Província João Ferreira d’Araujo Pinho, em 1° de março de 1876.
REFERÊNCIAS
Fontes Primárias
Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe
Processo crime de furto ( 1876 ) , cx.01/884
Inventário post-mortem (1863), cx.01 – A
Arquivo Público do Estado de Sergipe
Segurança Pública – correspondência recebida
Ofício do delegado de Japaratuba, Manuel Dias d’Almeida para o Chefe de Policia Manuel
Maria do Amaral: SP1 – 301, 5 de outubro de 1871.
Auto de perguntas feito a escrava Limôa : SP1 – 176, 9 de novembro de 1871
Auto de perguntas feito ao escravo Romão: SP1 705, 22 de março de 1872
Auto de perguntas feito ao escravo Vicente: SP1 – 178, abril de 1872.
Auto de perguntas feito ao escravo Locadio (José boi): SP1 – 178, 22 de abril de 1872.
Ofício do Juiz Municipal de Japaratuba para o Chefe de Policia Manuel dos Anjos: SP1 –
363, 28 de Julho de 1872.
Auto de perguntas feito ao escravo Francisco: SP1 – 178, 22 de dezembro de 1872.
Auto de perguntas feito a escrava Anna Rita: SP1 – 373, 03 de janeiro de 1873.
Auto de perguntas feito a escrava Vicência: SP1 – 373, 04 de janeiro de 1873.
Auto de perguntas feito a Maria: SP1 – 373, 04 de janeiro de 1873.
Auto de perguntas feito a escrava Izabel: SP1 – 298, 07 de janeiro de 1873.
Oficio do alferes João batista da Rocha para o Chefe de Policia Manuel José Espínola Junior :
SP1 – 298, 20 de janeiro de 1873.
Auto de perguntas feito ao escravo José Maruim:SP1 – 298, 25 de março de 1873.
Ofício do capitão João Batista da Rocha Banha para o chefe de policia Vicente Paula Cascais
Teles: SP1 – 652, 6 de fevereiro de 1876.
Mapa dos crimes perpetrados por escravos: SP1 – 378, 3 de maio de 1876.
Auto de perguntas feito ao escravo Mauricio: SP1 705.
60
Segurança Pública – correspondência expedida
Ofícios para os delegados de Divina Pastora e Capela : SP1 – 575, 1876.
Ofícios para os promotores de Capela, Rosário e divina Pastora: SP1 – 585, 1876.
Câmara Municipal
Oficio do capitão João Batista da Rocha Banha para o chefe de policia Vicente de Paula
Cascais Teles: CM3 – 39, 21 de janeiro de 1876.
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
Relatório do Presidente da Província Cipriano d’ Almeida Sebrão – 24 de fevereiro de 1876.
Relatório do Presidente da Província João Ferreira de Araújo Pinho – 1° de março de 1876.
Casa de Cultura Afro-Sergipana
Transcrições dos autos de perguntas feitos ao escravo João Mulungu em 1876.
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______________. Quilombos : resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1987.Série
Princípios.
__________________. Rebeliões da senzala: quilombo, insurreições e guerrilhas. Rio de
Janeiro: Conquista, 1972.
62
NUNES, M. Thétis. Sergipe Provincial II (1840/1889).Rio de Janeiro:Tempo
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PASSOS SUBRINHO, Josué M. dos. Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e
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QUEIROZ,Suely R.Reis de. A abolição da escravidão. São Paulo : Brasiliense ,
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Geográfico de Sergipe. Aracaju,n° 33 , 2000-2002, pp.175-197.
ANEXOS
64
Anexo 1
Transcrição do Relatório do Presidente da Província João Ferreira D`Araujo Pinho em
1° de março de 1876.
Há longos anos são os calhambolas o terror da população do interior. Formando quilombos
diferentes , percorrem os engenhos que querem , penetram algumas vezes disfarçados na
cidade, roubam, fazem quanta violência entendem.
A policia não tem sido inacta, incessantemente trabalha para extinguir todos os quilombos.
E tem encontrado decidido auxilio da parte de seus agentes nos lugares em que é preciso
perseguir esses malfeitores. Eles costumam mais freqüentar o termo de Divina Pastora; as
vezes chegam também ao da Capela e ali são logo rechaçados pelo brioso oficial que
comanda o destacamento; outras vezes tocam ao termo de laranjeiras onde a autoridade
policial trata de batê-los com o dedicado auxilio do tenente José Casemiro Teixeira, ativo
comandante da guarda municipal daquela cidade.
Muitos escravos têm sido capturados nos termos referidos.
Agora tenho a satisfação de dizer a V.Exc. que considero extintos os quilombos. O mais
forte elemento de resistência, o calhambola João Mulungu, de quem geralmente mais se
receava, e todos dizem ser o mais audaz, o chefe dos escravos fugidos, foi capturado no dia 13
de janeiro corrente.
O dr. Manoel Cardoso Vieira de Mello, juiz Municipal de Divina Pastora tendo
conhecimento de que o bandido João Mulungu atacava no termo de sua jurisdição as pessoas
que encontrava, e ali cometia roubos e outras tropelias, veio em pessoa se me oferecer para
auxiliar-me na captura do dito calhambola.
Não demorei-me em providenciar, de acordo com V.Exc.para expedição de uma diligência
sob o comando do capitão João Baptista da Rocha, e essa diligência obteve o mais feliz êxito.
Depois de cinco dias e cinco noites de fadigas, da parte do dr. Juiz Municipal, do capitão
Rocha, do alferes Marcolino de Souza Franco e das praças que os acompanhavam,
conseguiram a captura do celebre bandido.
Por toda parte em que a intrepida escolta passava com o referido escravo, era vitoriada pelo
povo em massa que manifestava ainda francamente o seu agradecimento ao dr. Juiz Municipal
de Divina Pastora , ao capitão João Baptista da Rocha e ao alferes Marcolino, os quais
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acompanharam aquele malfeitor até esta capital onde tem sido ele objeto de curiosidade. Pode
ter 25 anos mais ou menos, é crioulo, de estatura regular, e como bem o qualificaram << um
pouco ladino e insinuante, resignado hoje com a sua sorte, preferindo com tudo ser enfocado
na praça publica a voltar para a casa de seu senhor. >>
Tenho procedido a todas as averiguações acerca dos crimes por ele cometidos, para os fins
convenientes.
Sabe já V.Exc. a quem deve-se especialmente tão importante captura; sabe que nela
distinguiram-se o dr. Juiz Municipal de divina Pastora, o capitão João Baptista da Rocha, e o
alferes Marcolino de Souza Franco.
Tenho porém, o dever de recomendar a v.Exc. o nome do capitão João Baptista da Rocha,
não só por esse serviço que acaba de prestar, como por outros anteriores. É um oficial sempre
pronto para as diligencias mais arriscadas que a Policia empreende, e nas quais tem obtido
bons resultados, capturando grande numero de malfeitores.
66
Anexo 2
Transcrição do Auto de Perguntas feito a escrava Limôa
Aos nove dias do mês de Novembro do ano de Nascimento de Nosso senhor Jesus Christo
de mil oitocentos e setenta e um nesta Villa do Rosario do Catete comarca de Maruim
Província de Sergipe [...] abaixo declarado fui [...] sendo ali presente o Delegado de Policia
João da Silva [...] mandou [...] a sua presença a escrava Limôa que se achava recolhida no
quartel de Destacamento passou a fazer-lhe as perguntas seguintes:
Perguntada qual o seu nome idade estado filiação naturalidade profissão ?
Respondeu chamar-se Limôa com idade de trinta anos pouco mais ou menos, filha de
Ignacio e Antonia [...] José Agostinho senhor do engenho Retiro, solteira natural do mesmo
engenho Retiro, e atualmente escrava de Domingos de tal conhecido como Domingos [...]
morador da cidade de Laranjeiras, [...] cujo domínio se ocupou-a de tirar lenha e capinar.
Perguntada qual a razão de se [...] ato?
Respondeu que por motivos [...] fugira da casa de seu dito senhor no mês de São João desta
ano e dirigiu-se ao engenho do Porção deste Termo para pedir que [...] o proprietário daquele
engenho, mas [...] após tanto dirigiu-se ela [...]ao engenho do [...], e também aquele
proprietário negou-se de [...], - A vista disto dirigiu-se ela pela estrada que [...] o engenho se
São Jose, e antes que ali chegasse encontrou sete escravas que andavam fugidas, e [...] para o
coito onde se achavam refugiadas, ao que ela [...] , e com efeito seguiu com elas até a mata do
dito engenho S.Jose no lugar denominado [...] onde se reunirão com os outros que ali se
achavam que ao todo formavam o mínimo de vinte, e são os seguintes: José Leocadio [...]
escravo de um homem chamado Batalha do rio de São Francisco, com aquele escravo andava
ela [...].
[...] esta o africano do engenho do [...] Jardim deste Termo [...] mulato moço.
[...] crioulo do engenho da serra negra deste Termo.
[...] crioulo do mesmo engenho.
João Mulungu do engenho do mesmo nome no termo de Laranjeiras, crioulo que [...] de
chefe dos outros .
Antonio Marcova crioulo escravo do tenente coronel [...] do engenho [...] Termo de
Laranjeiras.
Guilherme mulato que diz ter sido d’Antonio D’Araujo no termo de Laranjeiras.
Marcolano mulato do Doutor Domingos também de Laranjeiras.
67
João [...] africano do capitão Isaac de Japaratuba.
Luis crioulo escravo de Thomas D’Aquino neste Termo do Rosário.
Jacinto[...] do engenho Poções deste Termo.
Barnabé crioulo do engenho Oitocentos, o qual [...] para outra busca padrinho, [...].
[...] crioulo [...] do engenho Serra negra.
[...] mulato do mesmo engenho.
[...] crioula moça que não sabe ela supostamente a quem pertence.
Francisca crioula moça que [...] donde ela [...]
Thomasia crioula do engenho Santa Barbara, que já [...] na mata.
Luisa crioula do engenho Jurema, a qual diz ter [...] um filho, mandando depositá-lo na
porta da Igreja de S.Benedito em Laranjeiras.
Perguntada se esses escravos permaneciam no engenho de São José ?
Respondeu que [...] das matas daquele engenho ao nos do engenho Limeira Termo de
Divina Pastora; que ela passou com o dito Jose Leocadio sempre se comunicarão [...] Rancho
nas matas do engenho Bom Sucesso, e dali irão ao grande Rancho de São Jose, e depois
também se arrancharão com eles no Bom sucesso Venceslau de Arcanjo.
Perguntada se os escravos fugidos tinham comunicações com os dos engenhos visinhos ?
Respondeu que se relacionavam estreitamente com os escravos de São Jose, a ponto de
arrancarem mandioca para eles fazerem a farinha que repartiam, ficando ela [...] para ajudar a
fazer a farinha da noite; igualmente repartiam [...] dos gados que furtavam os ditos fugidos
pelos pastos dos engenhos visinhos. Quanto aos outros engenhos disse que não tinham
relações.
Perguntada onde se achavam esses escravos acoitados no diz que foi cercado o rancho
pelas tropas da [...] ?
Respondeu que nessa ocasião tinham subido para o engenho da Limeira [...] parte dos
escravos fugidos, e que apenas existiam ali em são Jose os escravos [...], [...] e Thomasia que
passarão [...] para as matas do engenho [...], tirando [...] um pequeno Rancho que ficava [...]
do pasto do engenho São Jose, donde também se retirarão por aviso que lhes deu Agostinho
escravo do mesmo engenho, de que a dita tropa tinha de aparecer ali [...] escravos fugidos.
Perguntada se sabe quem foram os [...] d’uma mulher de nome Candida moradora no
engenho Bom sucesso ? Respondeu que sabe ter sido o dito Jose Leocadio,
Venceslau que [...] a dita mulher pelas quatro horas da tarde [...] do Bom Jardim, [...] o mato e
maltratarão, roubando-lhe dinheiro e roupas.
Perguntada como sabiam esses escravos que aquela mulher passaria ali aquela hora, [...] ?
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Respondeu que os mesmos escravos de Bom Sucesso que não gostavam dela, procurarão
os ditos escravos por tudo conseguirão [...].
Perguntada se sabe quais os escravos do Bom Sucesso que se combinarão com os [...]
prestando-lhes avisos ?
Respondeu que sabe ter recebido tal ordem Ladislau.
Perguntada como deixou ella a companhia dos ditos escravos e quando ?
Respondeu que estando grandemente molesta de feridas nas partes [...], declarou ao dito
seu companheiro Jose Leocadio que não podia mais continuar [...] sem remédios, ao que de
boa vontade [...] aquele José e acompanhou até o engenho das Poções onde a deixou no mato
no dia domingo próximo passado,e d’ali foi ela [...] dirigindo-se as [...] do referido engenho
d’onde mandou avisar aos donos do engenho, que por ordem do delegado a mandou para o
hospital desta vila . E como mais nada foi perguntado nem respondido [...] o presente auto
João Jose de [...] depois de lhe ser lido e achar conforme, a qual [...] também assinado e
rubricado pelo Delegado do que dou fé.
Eu Antonio Dias de [...]
João da Silva [...]
João Jose de Santos Amaro.
69
Anexo 3
Transcrição do Auto de Perguntas feitas à escrava Anna Rita do engenho Tabúa
como abaixo se declara.
Aos três dias do mês de janeiro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de
mil oitocentos setenta e três, nesta vila de Nossa Senhora de Divina Pastora, comarca da
cidade de Laranjeiras, Província de Sergipe d’El rei, [...] de residência do Alferes João
Baptista da Rocha, e Delegado de Policia , aonde eu Escrivão [...] nomeado fui vindo pelo
mesmo Delegado foram feitas a dita escrava as seguintes perguntas – [...] seu nome , idade,
estado, filiação, naturalidade, profissão? Respondeu chamar-se Anna Rita, escrava do
cidadão Francisco Lucino do Prado proprietário do dito engenho Tabua, de idade de trinta e
cinco anos, que é casada, filha de Cláudio e Jacinta a saber Cláudio (liberto) e Jacinta cativa e
africana, natural do mesmo engenho Tabúa ; seu trabalho é lavoura. Perguntado se é verdade
ter relações ilícitas com o escravo fugido João Mulungu? Respondeu que é verdade.
Perguntado qual o lugar que havia tido relações com o dito escravo Mulungú? Respondeu
que uma das vezes fora no lugar denominado Monte Santo; isto a sete horas da noite , e as
mais vezes no pasto do engenho Limeira pertencente ao proprietário o Comandante Superior
João Maria d’Araujo Nabuco. Perguntado se o dito comandante superior João Maria
consentia em seu engenho a reunião dos quilombolas? Respondeu que fazendo esta mesma
pergunta aos escravos fugidos, eles responderão que o mesmo João Maria não se importava.
Perguntado se haviam muitos quilombolas no dito engenho Limeira? Respondeu que havia
muitos capazes de mais um engenho, e que estes passavam o dia de domingo no lugar
Mangueira do mesmo engenho, e que a noite iam para as senzalas, e para o corpo do engenho.
Perguntado que presentes têm recebido do mesmo escravo Mulungú? Respondeu que deu-lhe
a quantia de cinco mil reis e mais quatro varas de [...]. Finalmente foi-lhe perguntado se o
referido escravo nunca foi a propriedade a que ela pertence? Respondeu que nunca.
E como nada mais disse nem lhe foi perguntado, assinou o presente auto o Tenente Manuel
de Mello Franco Lima a rogo da respondente por declarar não saber ler nem escrever, o qual
vai também assinado pelo Delegado e rubricado pelo mesmo, de que tudo dou fé. Eu [...]
Barboza de Góis Escrivão que [...]
João Baptista da Rocha
[...]
70
Anexo 4
Transcrição do Auto de Perguntas feita a escrava Vicencia da proprietária do
engenho Bete, pelo Delegado de Policia como abaixo se declara.
Aos quatro dias do mês de Janeiro do ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo
de mil oitocentos setenta três, nesta vila de Divina Pastora, Comarca da Cidade de
Laranjeiras, Província de Sergipe d’El rei, e casa de residência do Delegado de Policia deste
Termo, [...] Escrivão [...] nomeado fui vindo , e presente a escrava Vicencia, pelo mesmo
Delegado foram feitas as seguintes perguntas – [...] seu nome, idade, estado, filiação,
naturalidade, e profissão? Respondeu chamar-se Vicencia , escrava da senhora Dona
Victoria, moradora no engenho Mata Termo de Itabaiana , de idade de pouco mais ou menos
de trinta e oito anos , viúva, filha de Germana nagô e Felipe crioulo [...] no engenho Bom
fim, natural do engenho Velho, porem [...] reside no engenho Bete do proprietário Antonio
Luis de [...] que sua ocupação é lavoura ; perguntado qual a razão de pertencer a Dona
Victoriana do engenho Mata, e achar-se no engenho Bete do senhor Antonio Luis?
Respondeu que , achando-se fugida a três anos para quatro, procurou a cinco meses o
proprietário do engenho Bete por ser este filho de Dona Victorina. Perguntado a quem
pertencia grande porção de roupa que existia dentro de duas caixas de madeira, e d’um [...] de
cipó que se achava na senzala de sua residência? Respondeu que pertencia ao escravo fugido
João Mulungu, que lhe tinha feito presente quando ela se achava fugida. Perguntado a quem
pertencia um silim que se achava debaixo da cama coberto com porção de tabuas?
Respondeu que pertencia ao escravo fugido Maximiano, e que este lhe dera para guardar dias
antes de Natal. Perguntado se depois que apresentou-se ao proprietário do engenho Bete, se
nunca comunicou-se com os quilombolas nos ranchos nas matas? Respondeu que não existia
ranchos, e que toda comunicação que tinha com eles era no lugar denominado Mangueira
dentro do pasto do engenho Limeira em uma fonte , e casa, de banho, e que recorda-se de
sempre ali permanecerem os escravos seguintes – Antonio – João Mulungu – Maximiano –
Guilherme – Marculino- Jacinto- Joaquim- Antonio- Venceslau – [...] – Mathias- [...]- e
mulheres, Conceição, e Ignez, Belmira – Francisca e Carlota, cativas estas três. Perguntado se
tem certeza de que estes escravos refugiavam-se para as matas, ou se dormiam ali na fazenda?
Respondeu que durante a noite lhe constava [...] lhe contou por eles fugidos que dormiam em
um pequeno mato junto a cerca do pasto. Perguntado se sabe que a mulher forra de nome
Maria tinha relações ilícitas com alguns dos escravos? Respondeu que sim, que era amasia do
71
fugido Mathias. Finalmente foi-lhe perguntado se sabe que a escrava de nome Anna Rita do
engenho Tabua tinha relações ilícitas com João Mulungu, e qual a razão D’ella respondente ir
trocar palavras injuriadas com a referida escrava? Respondeu que é verdade ter aquela
escrava relações com o escravo João Mulungu, e isto no pasto do engenho Limeira, e que
dando João a quantia de cinco mil reis a ela respondente como já tendo recebido presentes de
João, formalizou-se com aquela dádiva motivo porque foi tomar satisfação com a tal Anna
Rita. Declarou mais a respondente que um individuo de nome Batalha morador no Distrito da
villa do Rosário do Catete anda acompanhado pelo escravo fugido Venceslau observando o
movimento das tropas para comunicar os quilombolas e de quem aos mesmos de todo
fornecimento alimentar, e munição para as armas, e quase diariamente se achava em reuniões
com os quilombolas em seus aposentos. E por nada mais responder nem lhe ser perguntado
assina [...] Eduardo Correa Dantas, com o Delegado João Baptista da Rocha ---------------------
Eduardo Correia Dantas.
72
Anexo 5
Transcrição do Auto de Perguntas feita pelo Delegado a Maria como abaixo se segue.
Aos quatro dias do mês de janeiro de mil oitocentos setenta três nesta vila de Divina
Pastora , comarca da cidade de Laranjeiras, Província de Sergipe d’El-rei e casa de residência
do Delegado de Policia o Alferes João Baptista da Rocha aonde eu Escrivão [...] assinado fui
vindo, sendo [...] a mulher suspeita ter comunicação com escravos fugidos, pelo mesmo
Delegado foram feitas as perguntas seguintes – [...] seu nome, idade, estado, filiação,
naturalidade, profissão, ela respondeu chamar-se Maria, de idade de vinte e cinco anos,
solteira,filha de Manoel Salles, e Agostinha, natural do engenho Tabua do Termo de
Itabaiana, vive de costuras. Perguntada se é verdade ter relações elícitas com escravo fugido
Mathias conforme declarou no interrogatório a escrava Vicencia ? respondeu que é verdade e
dele recebeu a quantia de cinco mil reis. Perguntada com quem foi batucar no engenho [...]
no dia de Natal? respondeu que acompanhada com a escrava Anna Rita do engenho Tabua
se dirigirão ao engenho dito, [...], e lá encontrarão os escravos fugidos de nomes Marcolino –
Nabuco – João Mullungu – Maximiano, e com eles divertiu-se toda noite; regressando-se para
o engenho Tabua no dia imediato a tarde vindo ela respondente na garupa do cavalo em que
vinha montado o escravo fugido Mathias, que ali também se achava e a escrava na garupa do
cavalo que vinha montado o escravo Marcolino, [...] ambos no engenho [...]. Perguntada
aonde tinha comunicado-se com o referido escravo Mathias? respondeu que no lugar
denominado Monte Santo. Perguntada se nunca viu os escravos fugidos na fazenda da
Tabua? respondeu que nunca viu na dita fazenda ditos escravos. Perguntada se não sabe se
alguma pessoa forra tem relações com os falados escravos? respondeu que não lhe [...] que
pessoas forras relacionem-se com os escravos fugidos, e o que tem certeza é que a escrava
Anna Rita é amásia de João Mulungu, e deste tem recebido muitos presentes, e que faz essa
declaração por ter visto por vezes essa escrava com comunicações com o referido João
Mulungu. E por nada mais dizer nem ser perguntado assina por ela não saber ler nem
escrever assina o cidadão Manuel da Trindade Prado depois dele relido e a achar conforme o
qual vai também assinado pelo juiz e rubricado pelo mesmo.
Eu [...] Barbosa de Góis, Escrivão [...]
João Baptista da Rocha
Delegado
Manuel da Trindade Prado.
73
Anexo 6
Ofício do delegado Manuel Dias d’Almeida para Chefe de Policia Manuel Maria do
Amaral.
Em resposta ao oficio de VS, de 3 do corrente mês, em que me pede informações mais
minuciosas sobre o resultado da diligencia a que procedi sobre os quilombos existentes em
matas deste município e do Rosário, em 14 de setembro próximo passado, em virtude do
oficio de VS de 23 de Agosto, passo a responder.
No dia 13 do predito mês de setembro, parti desta vila com a força de 110 praças da
Guarde Nacional e do destacamento desta vila e reunindo quarenta praças da Guarda Nacional
do sitio [...] deste termo ; cheguei a noite com 150 praças ao engenho Ladeiras, ponto
assinado para reunir a força com a da Capela, comandada pelo Tenente Jeremias , que ali
chegou na mesma ocasião com noventa praças; formando-se assim o numero de duzentos e
quarenta praças.
No dia 14 pela manha, dividi a força e segui com parte dela para o engenho São José, de
propriedade de Francisco Tavares de Sá ,deixandode3 ir em primeiro lugar para as mattas [...]
algumas pessoas que fariam parte da força , que era debalde descer matas porque os
quilombos estavam se duvida avisados, pela noticia que já corria, do aparato e reunião de
forças para essa diligencia ; e que por isso os quilombos estavam acoitados no engenho São
José.
O Tenente Jeremias marchou com parte da força para o engenho [...] propriedade do
mesmo Tavares, e ali não achando quilombos seguiu para as matas. Chegando eu ao
engenho São José, ordenei o cerco das senzalas , e aparecendo logo o proprietário dito
Tavares, armado de revolver dentro das botas; este opôs –se formalmente ao cerco ; gritando
em altas vozes , que não consentia que fossem cercadas as suas senzalas ; perguntando com
que ordem se procedia daquele modo; e que ele já sabia que o [...] Manuel Pereira dera cem
mil reis a um espia para observar a sua fazenda , e que os escravos quilombos estavam ali
mesmo nas matas ; e que estavam todos bem armados e preparados; más que nem esta
Diligencia com toda força que levava, nem o chefe de Policia com [...] praças eram capazes
de os pegar ;e acrescentou fazendo a ameaça de que eu e o [...] Manuel Pereira lhe pagaria
mas aquela afronta, ao que lhe responde que estava pronto a pagar-lhe quando me
apresentasse os quilombos.
Cumpre notar que nessa ocasião o dito proprietário chamou um escravo de nome Elias e o
expediu [...] a pressa montado a cavalo para o pasto de fora , sem lhe ordenar cousa alguma
74
senão que fosse ao pasto de fora. A despeito da oposição do dito proprietário, fiz cercar e
correr as senzalas , onde estavam cerca de dezesseis escravos , que não foram conhecidos pela
força , e que o dito proprietário disse serem seus, e querendo eu proceder ao interrogatório
desses escravos; o dito proprietário se opôs ; dizendo que eles nada responderiam. Alguns
dias depois da diligência , fui informado que alguns dos escravos que estavam nas senzalas
eram quilombos que ali estavam guardados, sob a proteção do proprietário.
Dali seguindo para as matas , encontrei logo um rancho de quilombos á distancia de cerca
de cento e cinqüenta braças do oitão das senzalas do dito engenho : este rancho estava vazio,
e já tinha sido habitado pelos quilombos , ali foram encontradas,gravadas [...] , os ferros de
alguns engenhos com que se costumava ferrar bois, entre eles, havia um [...] chamado - [...]
ferro – com o ferro do engenho Ladeira, ainda gravadas por baixo [...] ferro as seguintes
palavras – primeira morte - .
Continuando a busca pelas matas , encontramos diversos outros ranchos vazios , mas
dentre eles , alguns habitados, onde encontramos cordas, gamelas e salgadeiras, [...] novos,
ainda com gordura da carne que a pouco tempo tinha sido assada,um couro de boi ainda
fresco,e outros sinais evidentes de serem habitados. Nada mais encontrando nas matas ,
seguimos para o engenho da Palma , ai reunimos as forças , e partimos para as matas do
engenho Cabral ,onde se dizia haverem quilombos ,mas percorrendo as matas, não
encontramos vestígio algum. Em vista do exposto entendo que será frustrada qualquer
diligencia sempre que se reunir a força para o caso, o que pelo contrario, é de mais eficácia a
existência de força destacada que marcha de pronto, sem procedência de aparatos e
intimações.
Deus guarde á VS.
Delegacia de Japaratuba 5 de Outubro de 1871
Ilmo [...] Dr. Manuel Maria do Amaral. Muito Digno Chefe de Policia desta
Província de Sergipe
Manuel Dias d’Almeida
Delegado de Policia em exercício.
75
Anexo 7
Ofício do Capitão João Batista da Rocha Banha para o Chefe de Policia Vicente de
Paula Cascais Teles.
Marchando desta cidade no dia 14 do corrente com 10 praças sob meu comando, dirigi-me
a vila de Divina Pastora, e ali reunido com o distinto Doutor Juiz Municipal , Manuel Cardoso
Oliveira de Melo, o Alferes Marcolino de Souza Franco e oito praças marchamos na noite do
dia 15 com direção as matas do Engenho Maria Teles, Termo da Cidade de Maruim, nada
encontrando-se, no dia seguinte seguimos ao riacho Maniçoba aonde acampamos para
descansar a tropa.
A noite colocamos diversar tocais e nos dirigimos acompanhados por quatro praças ao sitio
Limoeiro, Termo de Divina Pastora afim de verificarmos uma denuncia que nos deram de
estar próximo as matas do mesmo sitio o Chefe dos quilombolas e seus companheiros, nada
encontramos, no dia 17 marchamos com direção as matas dos Engenhos Jurema e Capim
Assú.
Junto a cancela deste fomos agredidos por número superior a 28 escravos armados de
facas, enxadas e facões que indignados pela perseguição de seus parceiros tentaram espancar
a tropa, os quais foram repelidos a ponta de baionetas havendo apenas dois leves ferimentos
nas mãos dos soldados Manuel Januário de Sant’Anna e José Caetano d’Oliveira; deste
engenho marchamos com direção as matas do Povoado N.S. do Carmo e ali a noite
colocamos tocaias e nada se pôde conseguir, no dia seguinte regressamos para Divina Pastora
e ao chegar no Engenho Peripery encontramos a força da cidade de Maruim batendo as matas
do mesmo Engenho, ali prestamos toda coadjuvação precisa e nada se conseguindo
continuamos a marcha para aquela vila, quando chegamos ao Engenho Vassouras vinha a
nossa procura o escravo Severino, do Proprietário do Engenho Flor da Roda , termo da cidade
de Laranjeiras , e entregando uma carta,vi que se achava em uma das senzalas do mesmo
Engenho o chefe dos quilombolas João Mulungu.
As 10 horas da noite marchemos a encontrarmos com o referido escravo Severino, no
Engenho Velho Tanque de Moura e ali chegamos as 2 horas da manhã e não encontramos o
dito escravo, nos refugiamos para o centro de um grande bananeiral e mandamos o soldado
José Francisco da Rocha em camisa, ceroula e chapéu ver se encontrava o escravo Severino
como de fato poucas horas depois chegou dando parte que o João Mulungu andava fora,
porém que nós confiássemos que até ao meio dia chegava.
76
As 11 horas e meia do dia chegou o Severino e deu parte qu, João Mulungu se achava em
descanso com seu inseparável companheiro no centro de um grande canavial debaixo de uma
árvore, a vista do que marchemos sem perda de tempo e em pequena distância [...] o senhor
Dr.Juiz Municipal e o Alferes Marcolino, montado em seus cavalos , dois praças de
confiança.
Mandei que seis guardas franqueassem pela esquerda, nove carregasse pela retaguarda e eu
com três praças a cavalo atacamos pela frente.
Logo que os dois quilombolas sentiram a primeira opressão , um entregou-se e o João
desligou-se das mãos de três soldados e evadiu-se a toda carreira deixando as armas composta
de uma pistola de alcance carregada e um facão grande de ponta; não perdi tempo em
persegui-lo com os praças montados que a distância de duzentos passos mais ou menosfoi
arrojado ao chão com um pequeno golpe na cabeça.
Não tenho expressões para demonstrar a VSª os serviços prestados pelo incansável Dr.Juiz
Municipal Manoel Cardoso Vieira de Melo, Alferes Masrcolino de Souza Franco, e os 18
praças constante da relação junta.
Aproveito a ocasião para felicitar a VSª pela captura de tão audaz criminoso que a longos
anos causa grandes horrores aos habitantes de minha Província.
Deus Guarde a VSª
Quartel em Divina Pastora 21 de Janeiro de 1876.
Ilmo Sr.Dr. Vicente de Paula Cascais Teles
M.D. Chefe de Policia desta Província
João Batista da Rocha Banha
Capitão Comandante da Diligência

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